|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"Fui muito radical, todos pensam que sou um monstro"
Artista francesa Orlan, que transformou seu próprio corpo com cirurgias, dá palestra hoje, em SP, e sexta, no Rio
Ela criou o manifesto da arte carnal, deixou-se operar com transmissão ao vivo pela televisão nos anos 90 e chegou a implantar chifres
SILAS MARTÍ
DA REPORTAGEM LOCAL
Ela tem chifres e se excita
com os contornos de um fêmur.
Ama o fígado, o pâncreas e admira o design esplêndido das
entranhas sem perder tempo
com sentimentos. Orlan declarou tudo isso, entre deboche e
poesia, em seu manifesto por
uma arte "mais carnal".
A francesa que escandalizou
o mundo das artes nos anos 90
retoma, numa palestra hoje, no
Museu de Arte Contemporânea da USP, as diretrizes de seu
manifesto e todo o processo
que a levou a protagonizar o
primeiro "extreme makeover"
da história da arte.
Na linha da chamada body
art, corrente artística que explorou os limites do corpo como suporte para performances
de todo tipo, Orlan foi radical.
Numa série de nove cirurgias
plásticas transmitidas ao vivo
pela televisão em 1993, ela se
transformou, com implantes
no queixo, na testa, nas bochechas e ao redor dos olhos.
Sob os efeitos da anestesia,
fez pintura a dedo com o próprio sangue e chegou a implantar chifres na testa -os quais
ela nunca removeu. Para completar o espetáculo, seus enfermeiros-performers também
vestiam o melhor da moda durante os rituais.
"Acho que fui mesmo muito
longe", admite Orlan em entrevista à Folha, por telefone, de
Salvador, onde abriu o ciclo de
palestras no Brasil que termina
no Oi Futuro, no Rio, nesta sexta. "Hoje todo mundo pensa
que eu sou um monstro, mas
não é bem assim."
Era uma espécie de transcendência estética o que ela
buscava na mesa de cirurgia.
Orlan, que diz ter vindo de uma
família libertária, muito liberal
para sua época, conta que descobriu a religião por meio da
arte. Numa alusão nada hermética à iconografia cristã, chegou
a fabricar sudários do próprio
rosto usando os esparadrapos
ensangüentados de suas operações -a série cirúrgica, aliás,
foi batizada "A Reencarnação
da Santa Orlan".
"Meu corpo se tornou um espaço de reflexão", afirma a artista. "O que eu fiz foi usar a cirurgia para fazer um auto-retrato pessoal, mas sei que foi
forte demais, radical demais."
Dor visual
Orlan tem hoje um rosto
muito diferente do que tinha
antes de suas cirurgias-performances, mas não se acha feia.
"A beleza nunca foi meu problema", dispara. "Eu amo as
coisas mutantes, essa diferença
foi construída com vontade, e é
isso o que importa, o resultado
artístico, não o plástico."
Retratada como diva ainda
com suturas, pontos e sangue
coagulado no rosto, Orlan tentou mostrar que a beleza não
passa de convenção. Depois,
num processo menos radical e
menos doloroso, passou a fazer
intervenções digitais em fotografias da própria cara, incorporando, em cada série, traços
de uma etnia ou tribo num determinado momento histórico.
"Nas minhas operações, eu
nunca sofri", lembra. "Quem
sofria era o público." Orlan diz
que era anestesiada de modo a
não sentir dor e ficar lúcida o
suficiente para pintar com o
próprio sangue, dar orientações e acompanhar o processo.
Está aí o principal contraponto à arte da sérvia Marina
Abramovic, performer que estará na próxima Bienal de São
Paulo, notória porque sofreu
em cena e fez o público sofrer
junto com sua dor sem anestesia. "Somos muito amigas, mas
ela se dá outras regras do jogo,
sofre", diz Orlan. "Eu gosto do
corpo pleno que não sente dor,
o corpo saudável, que goza."
ORLAN
Quando: hoje, às 14h, em São Paulo;
29/8, às 19h30, no Rio
Onde: MAC-USP (r. da Reitoria, 160,
tel. 0/xx/11/3091-1118; livre); Oi
Futuro (r. Dois de Dezembro, 63, tel.
0/xx/21/3131-3060; livre)
Quanto: entrada franca
Texto Anterior: Uruguaio dá volume ao tempo em exposição Próximo Texto: Nouvel organiza mostra do escultor César Índice
|