São Paulo, quinta-feira, 25 de setembro de 2008

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NINA HORTA

Entre umburanas e pamonhas


"São as comidas que, enquanto cozinham, vão transformando o dia de quem está ali. Comê-las é só o epílogo"

É ENTRAR no campo das reminiscências que os leitores acodem, alegres ou chorosos... E o melhor de tudo, escrevem minha crônica. O assunto foi um ingazeiro sobre o ribeirão, e o Marco Aurélio Gondim conta:
"Li a sua coluna desta quinta-feira, sobre o ingá, a represa e os cheiros que, à moda proustiana, podem levar de Nantes (o Marcel) a Osasco (sua manicure) ou a Salvador (meu caso). Minha memória também sempre esteve ligada ao cheiro, mas é engraçado que assim como consigo me apropriar das memórias alheias (guardei na pele hoje a sensação do banho frio de rio, agarrado num galho de ingazeira), também me aproprio de cheiros que não senti. Lembro da minha avó contando que torrava sementes de umburana para perfumar o tabaco e o rapé que meu avô usava lá no interior da Bahia. E eu, que não conheço nem tabaco nem rapé nem umburana, mas tenho a exata sensação de conhecer estes aromas sonhados? Imagino-os quase picantes, uma espécie de cominho doce, fazendo espirrar, espirrar, espirrar e suspirar. Além de ladrão de memórias, agora dei para roubar cheiros."
De Muzambinho lembra o Marcos Benassi:
"Mas gloriosa mesmo era a cerimônia de fazer pamonhas. Uma festa na "cozinha de baixo", fora da casa, com um enorme fogão de lenha, um pequeno paiol, e as coisas acessórias -pia, balcão etc. Todos ali em roda, numa azáfama tremenda -a palavra, ela mesma de uma velhice incontável.
As tias e tios assumiam as tarefas mais "arriscosas", de cortar o milho verde, manusear os tachos e encher com o caldo amarelo e quente os "copos" feitos das palhas selecionadas. À criançada, cabia separar as palhas mais delicadas, apropriadas para o feitio das pamonhas; tínhamos também que tocar tediosamente o moedor de carne no qual era moído o milho (passado duas vezes pelo moedor, era a conta certa), logo antes de começar seu cozimento. Separávamos também os "amarrios", cortados pelas tias com capricho, para diferenciar as pamonhas "de doce" e "de sal". E nessa comunhão de adultos, velhos e crianças era passada metade da semana, dependendo da quantidade de espigas que algum compadre trazia da sua rocinha, em paga de favores e gentilezas recebidas durante o ano. E mais de uma vez, a depender das safras conseguidas.
Você hoje falou dos cheiros, que meu nariz de fumante inveterado começa a me negar. Mas mais do que o cheiro do milho suculento, das tias temperando o caldo grosso cozido por horas a fio, mais do que isso, me bate uma saudade intensa daquele ajuntamento alegre, que recebia quem chegava sem avisar, que integrava os de fora, sem a necessidade de ordens, sem "processos", simplesmente chegando e emprestando suas mãos pr'aquela transformação das espigas no caldo dourado, de doce e de sal. E rindo, contando histórias, trazendo notícias das roças -e as fofocas, que a tia mais "braba", velha e orgulhosamente virgem, calava com olhadas de esguelha, fulminantes. Cerimônia cheia daquele pessoal tão familiar e tão diferente, chegando e saindo em meio às conversas, os panelões borbulhando, a criançada brincando, numa sagrada sem-cerimônia que só cabe na vida duma cidadezinha do interior.
E agora me dou conta, porque, numa casa que podia ser alvo de outras reformas, resolvemos fazer uma cozinha. E uma cozinha "de roça" -na verdade, uma "cozinha Mamanguá".
Tudo por conta dessas histórias de infância, dessa comunhão que se consegue nos arredores do fogão, e depois na mesa, a alegria de desfrutar daquelas comidas.
Somos nós que, ao cozinhar, transformamos os alimentos? Pretensão besta: são as comidas que, enquanto cozinham, vão transformando o dia de quem está ali ao seu redor. Comê-las é só o epílogo."

ninahorta@uol.com.br



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