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São Paulo, sábado, 25 de outubro de 2003

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TODAS AS TERRAS DO NUNCA

Autor de "Dicionário" diz que, às vezes, geografia imaginada é melhor do que enredo

"Invenções superam escritores menores"

Ilustração James Cook/Reprodução de "Dicionário de Lugares Imaginários"
PAÍS DAS MARAVILHAS Sob a Inglaterra, o reino está em "Alice no País das Maravilhas" (Lewis Carrol) DA REPORTAGEM LOCAL

Leia a seguir trechos de entrevista com o escritor Alberto Manguel, autor de "Dicionário de Lugares Imaginários".
(CASSIANO ELEK MACHADO)

Folha - Que períodos foram os mais férteis para a criação de lugares imaginários?
Alberto Manguel -
Creio que os séculos 17 e 18 são os mais importantes. Com as explorações que se vinham fazendo se sente a necessidade de criar lugares nos quais se pudesse colocar idéias sociais, econômicas e políticas.
A ilha de Robinson Crusoé (de Daniel Defoe) ou as viagens de Gulliver (de Jonathan Swift), que são duas utopias fundadoras, são dessa época. Um pouco antes nasce a "Utopia" de Thomas Morus. Esses três modos de lugares imaginários são os que dão lugar a toda geografia fantástica.

Folha - Que modelos são esses?
Manguel -
Existem várias utopias anteriores, mas nenhuma delas se concretiza de modo sistemático como a de Morus. Se por um lado existem noções de como se funda uma sociedade em Platão e Aristóteles, não há nenhum exemplo concreto até Crusoé. Já em Swift temos o protótipo da sociedade vista em espelhos que a distorcem, a representando menor, mais inteligente, mais brutal.

Folha - Antes dos gregos já se criava lugares imaginários...
Manguel -
Existe um elemento muito importante na geografia imaginária. O leitor precisa saber que ela é imaginária. Das utopias que podemos encontrar na antiguidade, como "Gilgamesh", são lugares imaginários por que nós, no século 21, sabemos que são imaginários. Não sei se o leitor contemporâneo de Gilgamesh o pensava como imaginário, não sei se o leitor de Plinio ou de Platão considerava que a Atlântida ou o País dos Homens sem Cabeça eram imaginários. Igualmente falar de literatura fantástica na China antiga não faz sentido. Para um contemporâneo de Lao-Tse, por exemplo, o unicórnio tem o mesmo valor de um cavalo.

Folha - Além de Swift, Dafoe e Morus, quem foram os grandes criadores de lugares imaginários?
Manguel -
A literatura de geografia imaginária permite a criação de esplêndidos lugares a escritores menores. Autores como James Branch Cabell ou Edgar Burroughs (o pai de Tarzan) criaram lugares imaginários esplêndidos sem serem grandes escritores. Suas imaginações eram capazes de criar lugares com todas as suas regras e qualidades, mas suas linguagens não são das maiores.

Folha - Se o sr. tivesse de organizar os lugares imaginários em continentes, como eles seriam?
Manguel -
Boa parte dos lugares imaginários são ilhas. Se as ilhas imaginárias existissem de verdade, quase não haveria lugar para a água. É muito mais fácil fazer crer em ilhas, colocadas em lugares distantes do Pacífico. Até hoje existem ilhas não desconhecidas, mas não visitadas. É mais fácil acreditar nelas, boiando no meio do nada, do que em um país imaginário entre a fronteira da Argentina e do Brasil.

Folha - Mas quais são os grandes grupos de lugares inventados? Manguel - Existem as utopias feministas, as de vampiros, utopias de homens sós, as cristãs.

Folha - Qual excursão dessas te deu mais prazer? Qual visitaria?
Manguel -
Visitar não sei se visitaria nenhum. São lugares todos bastante terríveis. Mas nos divertimos muito fazendo a descrição da cidade vampira de Paul Féval, por exemplo. É espetacular.

Folha - Quantos livros vocês leram no total para o dicionário?
Manguel -
Éramos jovens, tínhamos muita energia. Lemos mais de 2.000 livros. Não nos bastava ler a obra que mencionava um lugar imaginário, com toda a atenção para conseguir remontá-la com todos os detalhes. Se descobríamos que, para chegar a uma ilha, Tarzã tinha de remar por dois dias, então calculávamos quantos quilômetros uma pessoa podia percorrer remando em canoa e então colocávamos a distância. Ficamos três anos só nisso.

Folha - Por que os lugares de literatura futurista não foram incluídos? Vocês acreditavam que eram utopias que ainda podiam deixar de ser imaginárias?
Manguel -
Não (risos), foi questão de economia mesmo. Também havia uma questão conceitual. Incluindo lugares do futuro de alguma maneira se afetava a vontade de realidade que quisemos dar ao estilo do livro. Dizer que tal lugar se pode visitar porque existiu, então se poderia conhecer suas ruínas, ou porque existe é distinto do que dizer que no futuro se poderá visitar. Já requer muita suspensão de incredulidade por parte dos leitores.

Folha - Como é a produção atual de lugares imaginários?
Manguel -
Segue fértil como sempre. Creio que o leitor aceita enormemente o tipo de leitura que se escreve em seu tempo.
Hoje temos tanta desconfiança com toda informação, em parte porque nos afogam com tanta informação eletrônica e nos fazem crer que as únicas imagens que podemos acreditar são as fotográficas ou da TV, que o texto não dá ao leitor a sugestão de realidade.
Quando alguém escreve um romance e inventa um lugar imaginário, já sabe que o leitor não vai acreditar nesse lugar. E tanto o escritor quanto o leitor entram em acordo para jogar esse jogo sabendo que é um jogo. Ao passo que quando Defoe escreveu Crusoé ele sabia que era ficção, mas o leitor necessariamente não.


DICIONÁRIO DE LUGARES IMAGINÁRIOS. Autores: Alberto Manguel e Gianni Guadalupi. Tradução: Pedro Maia Soares. Editora: Companhia das Letras. Quanto: R$ 56 (495 págs.).


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