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27ª MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SP
Dois brasileiros atuam em "Tiresia", longa do diretor Bertrand Bonello, que é exibido hoje e mistura sexualidade e sagrado
Travesti do Brasil é matéria de tragédia
ALCINO LEITE NETO
EDITOR DE DOMINGO
Existem outras coisas interessantes no filme francês
"Tiresia", além do fato curioso de
ter como personagem um travesti
brasileiro interpretado também
por dois brasileiros -primeiro,
uma atriz (Clara Choveaux); depois, um ator (Thiago Teles).
Existe por exemplo a ousadia do
diretor Bertrand Bonello em
abordar sem meias-palavras a
condição transexual (como nas
cenas que exibem abertamente a
nudez hermafrodita de Tiresia).
Existe a preocupação de realizar
uma tragédia contemporânea que
se inspira no mito grego que dá
nome ao filme (Tirésias foi homem e depois mulher antes de ser
punido com a cegueira pela deusa
Atenas e virar um adivinho).
Existe a pretensão de Bonello de
misturar a sexualidade e o sagrado para demonstrar como eles estão interligados (um mesmo ator
faz o intelectual perverso e um padre carregado de dúvidas).
Existe ainda o esforço de confrontar e embaralhar paganismo e
catolicismo, razão e fé, natureza e
imitação, feminino e masculino...
Existem tantas coisas interessantes no filme que é o caso de
perguntar se não é exatamente isso que atrapalha "Tiresia": este
excesso de intenções e temas que
leva o diretor a realizar cada cena
como se estivesse empunhando a
chave dos enigmas da existência.
Tanta coisa que Bonello tem dificuldades para terminar o filme.
Formalmente, "Tiresia" busca a
contenção nas imagens e o rudimentar nas falas, um pouco como
se Bresson filmasse com Pasolini.
Mas Bonello nada tem da objetividade desses diretores, que souberam se colocar como poucos na
fronteira entre realismo e mito.
As sequências de "Tiresia" são
sobrecarregadas de solenidade e
simbolismos. E, detrás dos silêncios inquisitivos, as cenas vão inoculando uma discursividade fastidiosa. Exceto o protagonista Tiresia, todos os demais personagens
se esgotam rapidamente: são como peças de uma demonstração.
O filme tem duas partes (ou
"tempos"): antes e depois de o intelectual cegar Tiresia -é uma
das melhores cenas (a outra é a
longa sequência dos travestis no
Bois de Boulogne, em Paris).
A primeira parte, mais bem realizada, tem ainda a graça de ser estrelada por Clara Choveaux, filha
de brasileira e francês, ex-modelo,
bela atriz de impressionante força
cênica, que por si só é razão para
assistir ao filme. Vê-la exibir um
falo portentoso e a barba incontrolável torna ainda mais impactante a sua presença.
Tiresia
Idem
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