São Paulo, segunda-feira, 25 de outubro de 2004

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NELSON ASCHER

Sobre tiros e culatras

O episódio mais hilário da campanha presidencial norte-americana principiou com um artigo de Jonathan Freedland no jornal britânico "The Guardian" (22/9) cuja frase-chave era: "Se todos no mundo serão influenciados por essa eleição, não seria o caso de todos poderem votar nela?". Sua justificativa se apoiava na Declaração de Independência dos EUA, que requer "um respeito apropriado pelas opiniões da humanidade". A idéia estava no ar havia algum tempo e logo foi escarnecida por diversos comentadores observando que, entre outras coisas, tal voto implicaria igualmente aceitar ser governado pela Casa Branca e pagar impostos no país.
Isso não passaria de um delírio trivial da intelectualidade de um continente reduzido à relativa impotência por suas próprias escolhas se o jornal não tivesse decido transformar palavras em ação, lançando, em 13/10, a "Operação Condado de Clark". Localizado num Estado, Ohio, onde Kerry e Bush estavam estatisticamente empatados, Clark County é um desses pequenos lugares cujo voto, devido ao modo como funciona o colégio eleitoral americano, terá um peso importante na decisão.
"The Guardian" pôs à disposição de seus leitores on-line uma lista de milhares de eleitores supostamente indecisos de lá, com seus endereços, possibilitando a cada qual escrever a um deles. Assumindo uma posição de aparente neutralidade, o diário sugeriu que os leitores poderiam aconselhar seus destinatários a votarem seja no candidato democrata, seja no republicano. Como se trata, no entanto, de uma publicação decididamente de esquerda, não há por que duvidar de que a operação equivalia a um apoio maciço a John Kerry.
Qualquer ilusão de equilíbrio editorial foi apagada pela publicação de três cartas-modelo assinadas respectivamente pelo romancista John Le Carré ("Enquanto Bush conduzia a guerra do pai dele às custas de vocês, ele arruinava seu país. (...) E, aqui na Inglaterra, enquanto Tony Blair ecoar as mentiras de George Bush, seus pesadelos serão os nossos"), pela historiadora Antonia Fraser ("(...) Se você apoiar Kerry, você estará votando contra uma política exterior ferozmente militarista de matança preventiva") e pelo cientista Richard Dawkins ("Se Bush for finalmente eleito de fato, os americanos que viajem ao exterior terão de imitar a pronúncia canadense... Vote contra o candidato dos sonhos de Bin Laden").
Antes mesmo que as missivas começassem a ser remetidas, a operação foi dissecada na blogosfera e o blogger australiano Tim Blair, por sugestão de um de seus correspondentes e batizando sua reação de "Operação Guardian", divulgou os endereços eletrônicos de dezenas de jornalistas do diário britânico. Estes passaram a receber toneladas de e-mails de americanos (não somente do condado de Clark) majoritariamente indignados, para a satisfação dos republicanos e desalento dos democratas que, aliás, haviam prudentemente condenado a iniciativa. O jornal, "noblesse oblige", estampou, no último dia 18, uma seleção generosa de respostas.
Eis alguns trechos: 1) "Estou pouco me lixando se nossa eleição influencia ou não sua vida imprestável. (...) Se vocês quiserem uma eleição significativa em sua ilhota de merda cheia de comida de merda e dentes amarelos, vocês talvez devessem tentar não entregar sua soberania a Bruxelas e Berlim. (...) Ah, sim, escovem seus malditos dentes, animais imundos"; 2) "Fiquem fora da política eleitoral americana. A não ser que vocês queiram um pelotão de comandos navais, todos republicanos, baixando em seus escritórios para empacotá-los e levá-los a Guantânamo onde vocês poderão compartilhar acomodações com alguns jovens pastores solitários do Talebã"; 3) "Americanos de verdade não estão interessados em suas opiniões de invertidos, bebedores de chá"; 4) "Nada ajudará mais a solapar o Partido Democrata em Ohio do que ingleses metidos rondando o condado de Clark e dizendo às pessoas como votar"; 5) "Lembrem-se, por favor, de que sou apenas um americano. Isto é, não sou muito inteligente. Sou inculto e não entendo de história. Como também sou quase analfabeto, por favor, não usem palavras longas e rebuscadas"; 6) "Não metam o bedelho em nossos assuntos. Que eu recorde, nós chutamos vocês de nosso país em 1776".
Embora a meta original fosse atingir cerca de 40 mil eleitores, o "Guardian" resolveu interromper o processo depois que os endereços de uns 10 mil foram colhidos em seu site, dizendo, para desculpar-se, que o jornal se encontrava sob um ataque intimidatório de "spam" direitista. Que perfeitos estranhos invadissem coordenadamente a privacidade de cidadãos americanos na tentativa de tutelar seus votos, parecia legítimo aos olhos dos editores (se bem que muitos de seus subordinados tivessem achado contraproducente a proposta). Quando os eleitores pagaram na mesma moeda, aí eles desistiram de brincar.
O saldo final pode ser avaliado de duas maneiras diferentes. Se o que os "guardianistas" pretendiam era auxiliar politicamente um dos candidatos à Presidência dos EUA, tudo aponta para um fracasso desastroso: um tiro que saiu pela culatra, convertendo a publicação em motivo de chacota internacional. Vale a pena, porém, considerar que, do "New York Times" ao "The Telegraph", a história foi comentada na grande imprensa dos dois lados do Atlântico. Um órgão noticioso virou notícia. E nas páginas de seus concorrentes. Portanto, como campanha publicitária destinada a promover o "Guardian", a "Operação Condado de Clark" foi um sucesso absoluto.


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