|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NELSON ASCHER
Sobre tiros e culatras
O episódio mais hilário da
campanha presidencial
norte-americana principiou com
um artigo de Jonathan Freedland
no jornal britânico "The Guardian" (22/9) cuja frase-chave era:
"Se todos no mundo serão influenciados por essa eleição, não
seria o caso de todos poderem votar nela?". Sua justificativa se
apoiava na Declaração de Independência dos EUA, que requer
"um respeito apropriado pelas
opiniões da humanidade". A
idéia estava no ar havia algum
tempo e logo foi escarnecida por
diversos comentadores observando que, entre outras coisas, tal voto implicaria igualmente aceitar
ser governado pela Casa Branca e
pagar impostos no país.
Isso não passaria de um delírio
trivial da intelectualidade de um
continente reduzido à relativa
impotência por suas próprias escolhas se o jornal não tivesse decido transformar palavras em ação,
lançando, em 13/10, a "Operação
Condado de Clark". Localizado
num Estado, Ohio, onde Kerry e
Bush estavam estatisticamente
empatados, Clark County é um
desses pequenos lugares cujo voto,
devido ao modo como funciona o
colégio eleitoral americano, terá
um peso importante na decisão.
"The Guardian" pôs à disposição de seus leitores on-line uma
lista de milhares de eleitores supostamente indecisos de lá, com
seus endereços, possibilitando a
cada qual escrever a um deles. Assumindo uma posição de aparente neutralidade, o diário sugeriu
que os leitores poderiam aconselhar seus destinatários a votarem
seja no candidato democrata, seja no republicano. Como se trata,
no entanto, de uma publicação
decididamente de esquerda, não
há por que duvidar de que a operação equivalia a um apoio maciço a John Kerry.
Qualquer ilusão de equilíbrio
editorial foi apagada pela publicação de três cartas-modelo assinadas respectivamente pelo romancista John Le Carré ("Enquanto Bush conduzia a guerra
do pai dele às custas de vocês, ele
arruinava seu país. (...) E, aqui na
Inglaterra, enquanto Tony Blair
ecoar as mentiras de George
Bush, seus pesadelos serão os nossos"), pela historiadora Antonia
Fraser ("(...) Se você apoiar Kerry,
você estará votando contra uma
política exterior ferozmente militarista de matança preventiva") e
pelo cientista Richard Dawkins
("Se Bush for finalmente eleito de
fato, os americanos que viajem ao
exterior terão de imitar a pronúncia canadense... Vote contra o
candidato dos sonhos de Bin Laden").
Antes mesmo que as missivas
começassem a ser remetidas, a
operação foi dissecada na blogosfera e o blogger australiano Tim
Blair, por sugestão de um de seus
correspondentes e batizando sua
reação de "Operação Guardian",
divulgou os endereços eletrônicos
de dezenas de jornalistas do diário britânico. Estes passaram a receber toneladas de e-mails de
americanos (não somente do condado de Clark) majoritariamente
indignados, para a satisfação dos
republicanos e desalento dos democratas que, aliás, haviam prudentemente condenado a iniciativa. O jornal, "noblesse oblige", estampou, no último dia 18, uma
seleção generosa de respostas.
Eis alguns trechos: 1) "Estou
pouco me lixando se nossa eleição
influencia ou não sua vida imprestável. (...) Se vocês quiserem
uma eleição significativa em sua
ilhota de merda cheia de comida
de merda e dentes amarelos, vocês talvez devessem tentar não
entregar sua soberania a Bruxelas e Berlim. (...) Ah, sim, escovem
seus malditos dentes, animais
imundos"; 2) "Fiquem fora da política eleitoral americana. A não
ser que vocês queiram um pelotão
de comandos navais, todos republicanos, baixando em seus escritórios para empacotá-los e levá-los a Guantânamo onde vocês poderão compartilhar acomodações
com alguns jovens pastores solitários do Talebã"; 3) "Americanos
de verdade não estão interessados
em suas opiniões de invertidos,
bebedores de chá"; 4) "Nada ajudará mais a solapar o Partido Democrata em Ohio do que ingleses
metidos rondando o condado de
Clark e dizendo às pessoas como
votar"; 5) "Lembrem-se, por favor, de que sou apenas um americano. Isto é, não sou muito inteligente. Sou inculto e não entendo
de história. Como também sou
quase analfabeto, por favor, não
usem palavras longas e rebuscadas"; 6) "Não metam o bedelho
em nossos assuntos. Que eu recorde, nós chutamos vocês de nosso
país em 1776".
Embora a meta original fosse
atingir cerca de 40 mil eleitores, o
"Guardian" resolveu interromper
o processo depois que os endereços de uns 10 mil foram colhidos
em seu site, dizendo, para desculpar-se, que o jornal se encontrava
sob um ataque intimidatório de
"spam" direitista. Que perfeitos
estranhos invadissem coordenadamente a privacidade de cidadãos americanos na tentativa de
tutelar seus votos, parecia legítimo aos olhos dos editores (se bem
que muitos de seus subordinados
tivessem achado contraproducente a proposta). Quando os eleitores pagaram na mesma moeda, aí
eles desistiram de brincar.
O saldo final pode ser avaliado
de duas maneiras diferentes. Se o
que os "guardianistas" pretendiam era auxiliar politicamente
um dos candidatos à Presidência
dos EUA, tudo aponta para um
fracasso desastroso: um tiro que
saiu pela culatra, convertendo a
publicação em motivo de chacota
internacional. Vale a pena, porém, considerar que, do "New
York Times" ao "The Telegraph",
a história foi comentada na grande imprensa dos dois lados do
Atlântico. Um órgão noticioso virou notícia. E nas páginas de seus
concorrentes. Portanto, como
campanha publicitária destinada
a promover o "Guardian", a
"Operação Condado de Clark" foi
um sucesso absoluto.
Texto Anterior: Música/Crítica: Jorge Ben Jor comanda festa pagã para jovens Próximo Texto: Mostra BR de Cinema: rmãos Coen ironizam mania de "versão de diretor" Índice
|