|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
É Natal
Os primeiros Natais de minha infância foram momentos encantados. Ou, ao menos, é assim que me lembro deles.
No dia 24, de tarde, cada escrivaninha e console da casa era levado para a sala de jantar e servia para encompridar a mesa, de
maneira a acomodar os 20 e tantos familiares e amigos de sempre.
Logo começava a preparação do
peixe. Meu irmão e eu ajudávamos meu avô na tarefa selvagem
de tirar a pele das enguias, que
eram o prato tradicional e que
nenhum de nós gostava de comer.
Antes de ir para a cama, nós, as
crianças, preparávamos, perto da
árvore, uma mesinha: um copo de
vinho branco, um prato com uma
fatia de bolo e um pequeno guardanapo. No chão da entrada, colocávamos uma bacia com água e
outra com duas ou três cenouras.
O bolo e o vinho eram para o menino Jesus. A água e as cenouras
eram para a mula que o carregava.
Acordávamos de madrugada,
pela ânsia de ver os presentes e de
constatar a mágica passagem do
menino Jesus. A casa estava deserta, os presentes brilhavam embaixo da árvore, o copo de vinho
tinha sido em parte (só em parte)
bebido, a fatia de bolo tinha sido
mordida, assim como as cenouras. Havia, sempre, em algum lugar do corredor, uma poça: a mula, coitadinha, tinha feito xixi. Da
porta de entrada até a árvore, espalhava-se um rasto de folhas e
pétalas de flores, que, aparentemente, o menino Jesus deixava
atrás de si, por onde passasse.
Não sei por que, na nossa família, era o menino Jesus, e não Papai Noel, que trazia os presentes.
A coisa era ainda mais curiosa
por meu pai ser declarada e ferozmente ateu. E minha mãe o
acompanhava.
Menino Jesus ou não, era bom
fazer de conta: o ritual era um segredo de família que celebrava o
milagre de estarmos juntos. Também era um alívio constatar que
nem todos os presentes vinham de
meus pais. E era gostoso acreditar
numa certa benevolência do
mundo ou de seu criador: havia
ao menos um dia no ano em que,
indo para a cama cedo e forçando-se a fechar os olhos, alguém,
no meio da noite, faria o necessário para que acordássemos felizes.
Houve Natais em que o encanto
se perdeu. Num deles, bem perto
da meia-noite, morreu de repente
o pai de meu melhor amigo. Meu
pai saiu correndo com sua bolsa
de médico; a festa parou. Nós descobrimos que, às vezes, não só a
mula, mas o próprio menino Jesus
se esquecia (de alguém, no caso).
Os presentes, na manhã seguinte,
estavam lá; mas eu não sabia o
que fazer com eles. Também estava lá Alessandro, meu amigo do
peito, órfão.
E houve outros Natais em que
explodiram brigas de família incompreensíveis (para nós). Um
tio que saiu batendo a porta porque não gostou do lugar que sua
mulher ocupava na mesa ou uma
nora que não se dava com a sogra. Esperávamos demais e, à força de querer (e simular) harmonia para a família e o mundo inteiro, vivíamos decepções fellinianas se algum detalhe atrapalhasse o cartão-postal natalino.
Mais tarde, chegaram os anti-Natais da adolescência. Eram
proclamações indignadas contra
a família. Valia qualquer coisa
para contrariar o espírito dos Natais da infância: Natal numa boate? Natal num prostíbulo? Natal
jogando pôquer num boteco?
Ou, então, eram proclamações
políticas: Natal numa célula de
militantes, Natal com amigos e
companheiros, sem festa, sem árvore e cheio de conversas sobre as
armadilhas "alienantes" do consumo.
Alguns anos atrás, no dia 25,
acordei muito cedo, embora soubesse que ninguém viera, no meio
da noite, depositar presentes embaixo da árvore. O apartamento
estava deserto, todos dormiam
ainda. Atravessei a sala assim como costumo dormir, de camiseta,
sem pijama. Olhei com carinho
para os restos do jantar da noite
anterior e liguei a máquina do
café. Não sei por que, achei graça
enfiar na cabeça um chapéu de
Papai Noel que estava em cima
da mesa. Logo fui buscar o jornal
na porta de casa, caso ele já tivesse chegado.
Por precaução pudica e por preguiça de vestir uma calça ou mesmo uma cueca, tentei inventar
um jeito de apanhar o jornal sem
impor minha nudez aos (improváveis) vizinhos que estivessem
circulando pelo prédio às 6h do
dia de Natal. Ajoelhado, abri a
porta e estendi o braço; o jornal
estava lá, mas longe demais. Insinuei o ombro na abertura, mas
não bastou. Avancei mais, sempre ajoelhado, até que, empurrado pela própria porta, que é comandada por uma mola que a fecha automaticamente, estava
mais fora do que dentro do apartamento. Por sorte, o batente não
fechou atrás de mim. No instante
em que, enfim, coloquei a mão no
jornal, escutei um barulho. Levantei os olhos: bem na minha
frente, um vizinho, também ajoelhado e seminu, era vítima da
mesma manobra. Ficamos imóveis um longo momento, até que,
de jornal na mão, desejei-lhe "feliz Natal" e recuei.
Cinco minutos depois, sentado
contra a porta fechada do meu
apartamento, ainda estava rindo,
constatando que, durante esse estranho encontro, ficara não só
meio nu, de camiseta, mas também de chapéu de Papai Noel.
É um bom retrato de meus Natais de hoje. O chapéu representa
uma certa fé no ritual que afirma
a permanência dos afetos familiares e das amizades, mas sem esquecer que o espírito de Natal não
ganha das notícias do dia (o jornal na mão) nem dos desejos que
nascem abaixo da cintura (às vezes estamos sem cueca).
Feliz Natal a todos.
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Música: Samba e indie dançam no Numismata Próximo Texto: Tradição natalina - Dança: Charme preserva ícone de "Quebra-Nozes" Índice
|