São Paulo, segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

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GUILHERME WISNIK

A estrada e o pântano


Desintegrada internamente, a América Latina vive ainda o estigma do Tratado de Tordesilhas

É estimulante o fato de poder-se considerar um dos marcos da modernidade a subida de Francesco Petrarca, no século 14, ao monte Ventoux (perto de Avignon), movido não por objetivos práticos, mas pela ânsia indefinida por descortinar um vasto panorama. Geógrafo e cartógrafo, além de poeta, Petrarca é um precursor na concepção do tempo histórico linear e cumulativo, tendo figurado-o de certo modo na visão de paisagens extensas, em oposição à clausura medieval.
A modernidade da questão se renova com a descoberta da América, para a qual a vastidão do território é fundante. Notadamente, a fascinação pela "estrada aberta" tornou-se o cerne da subjetividade norte-americana, de Walt Whitman a Herman Melville, incluindo John Ford, Frank Lloyd Wright e a "land art".
No caso dos Estados Unidos, essa subjetividade afirmativa e onipotente espelha a eficiente conquista territorial do país, que ligou os oceanos Atlântico e Pacífico, e esquadrinhou o solo em unidades federativas geometricamente definidas. No caso, a sensibilidade voltada para o desarraigamento, para o fluxo contínuo, figurado nas estradas de ferro e no abandono do deserto, é o substrato de uma vocação imperialista pela conquista de novos territórios, tendo o arranha-céu como desdobramento lógico no plano vertical.
No caso da América Latina, algo diferente se passa, o que é muito bem expresso na descrição que Alejo Carpentier faz da imensidão do pampa como expressão de imobilidade, "onde por mais que se andasse, se estava sempre no centro de um redondo horizonte de terra monocórdio" ("El Arpa y la Sombra"). Desintegrado internamente por barreiras políticas e geográficas, o continente vive ainda o estigma do Tratado de Tordesilhas. Desse modo, não formou uma consciência de sua unidade territorial, dando a sensação de que o nosso interior é mal-formado, interrompido, constituído por terras ignotas ou paraísos edênicos, cuja dimensão quase inconsciente é diametralmente oposta ao caráter épico e "pop" de paisagens como o Gran Canyon e o Monument Valley. Vale lembrar, aqui, do abafado "pântano" da cineasta argentina Lucrecia Martel, como um lugar imobilizado e entrópico. Assim, parte da arquitetura que se desenvolveu aqui moveu-se menos na direção exteriorizável do arranha-céu do que no trato problemático com o solo, pensado como útero e como cova. Um exemplo: o Museu Brasileiro da Escultura.
Quando Paulo Mendes da Rocha lembra que Santos está na mesma latitude de Antofagasta, no Chile, pedindo uma ligação interoceânica que transponha a Cordilheira dos Andes, e insiste na necessidade de integração da Bacia Amazônica à Bacia do Prata através da navegação fluvial do interior continental, está atentando não só para as virtudes políticas e econômicas dessa compreensão estratégica mas para a dimensão do imaginário que ela carrega consigo. Não no sentido de copiar os americanos do norte, mas de completar um processo de "formação" cultural que não será nunca nacional, mas continental.


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