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GUILHERME WISNIK
A estrada e o pântano
Desintegrada internamente, a América Latina vive ainda o estigma do Tratado
de Tordesilhas
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É estimulante o fato de poder-se
considerar um dos marcos da
modernidade a subida de
Francesco Petrarca, no século 14, ao
monte Ventoux (perto de Avignon),
movido não por objetivos práticos,
mas pela ânsia indefinida por descortinar um vasto panorama. Geógrafo e cartógrafo, além de poeta,
Petrarca é um precursor na concepção do tempo histórico linear e cumulativo, tendo figurado-o de certo
modo na visão de paisagens extensas, em oposição à clausura medieval.
A modernidade da questão se renova com a descoberta da América,
para a qual a vastidão do território é
fundante. Notadamente, a fascinação pela "estrada aberta" tornou-se
o cerne da subjetividade norte-americana, de Walt Whitman a Herman
Melville, incluindo John Ford,
Frank Lloyd Wright e a "land art".
No caso dos Estados Unidos, essa
subjetividade afirmativa e onipotente espelha a eficiente conquista
territorial do país, que ligou os oceanos Atlântico e Pacífico, e esquadrinhou o solo em unidades federativas geometricamente definidas. No caso, a sensibilidade voltada para o desarraigamento, para o fluxo contínuo, figurado nas estradas de ferro e
no abandono do deserto, é o substrato de uma vocação imperialista pela
conquista de novos territórios, tendo o arranha-céu como desdobramento lógico no plano vertical.
No caso da América Latina, algo
diferente se passa, o que é muito
bem expresso na descrição que Alejo Carpentier faz da imensidão do
pampa como expressão de imobilidade, "onde por mais que se andasse, se estava sempre no centro de um
redondo horizonte de terra monocórdio" ("El Arpa y la Sombra"). Desintegrado internamente por barreiras políticas e geográficas, o continente vive ainda o estigma do Tratado de Tordesilhas. Desse modo,
não formou uma consciência de sua
unidade territorial, dando a sensação de que o nosso interior é mal-formado, interrompido, constituído
por terras ignotas ou paraísos edênicos, cuja dimensão quase inconsciente é diametralmente oposta ao
caráter épico e "pop" de paisagens
como o Gran Canyon e o Monument
Valley. Vale lembrar, aqui, do abafado "pântano" da cineasta argentina
Lucrecia Martel, como um lugar
imobilizado e entrópico. Assim, parte da arquitetura que se desenvolveu
aqui moveu-se menos na direção exteriorizável do arranha-céu do que
no trato problemático com o solo,
pensado como útero e como cova.
Um exemplo: o Museu Brasileiro da
Escultura.
Quando Paulo Mendes da Rocha
lembra que Santos está na mesma
latitude de Antofagasta, no Chile,
pedindo uma ligação interoceânica
que transponha a Cordilheira dos
Andes, e insiste na necessidade de
integração da Bacia Amazônica à
Bacia do Prata através da navegação
fluvial do interior continental, está
atentando não só para as virtudes
políticas e econômicas dessa compreensão estratégica mas para a dimensão do imaginário que ela carrega consigo. Não no sentido de copiar
os americanos do norte, mas de
completar um processo de "formação" cultural que não será nunca nacional, mas continental.
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