São Paulo, quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

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NINA HORTA

Quaresma em ritmo de samba


Quem recebeu o dom da fé entende bem o que serão estes 40 dias de oração e pouca comida

A ESTRELA d'alva no céu desponta, e a lua anda tonta, com tamanho esplendor, e as pastorinhas... Assim acabam os carnavais, homens e mulheres de alma limpa, exauridos, caídos em calçadas, o último confete enrolado nos cílios.Tá todo mundo de ressaca, ressaca, ressaca, ninguém aguenta mais, eu vou mandar parar, vai todo mundo pra casa curar...
Antes eu dividia o mundo entre os que tomam café da manhã e os que não tomam. Agora apareceu outra classificação, os que gostam e os que detestam Carnaval. Tenho dentro de mim que tanta gente passou a detestar depois que os meios de comunicação resolveram acabar com ele. É uma festa de fazer um boi dormir.
Falta de imaginação? Impossibilidade total de fazer alguma coisa melhor? "Está passando a porta bandeira Titinha, filha do Carlos Badaró." Queeeeemmmmmmm?
O Carnaval, pelas proporções que tomou, deveria ter um programa só dele ou até um canal que funcionasse o ano inteiro, entrevistasse os diretores de escola, ensinasse o samba no pé, desse ânimo ao melhor estilista e costureira, conseguisse patrocínios. Um ritual tão importante na nossa cultura e ninguém sabe de nada. Apareceria a cultura carnavalesca, os compositores, coreógrafos, Big Brothers do samba, o Bial de baiana. A chance de mostrar mulheres lindas, mulheres feias. Quem sabe entenderíamos por quais meandros passa a cabeça de um carnavalesco para inventar aqueles enredos?
Gente, será que não tem história nenhuma naquelas milhares de baianas, homem vestido de mulher, bicheiros, domésticas, grã-finos, atores, pretos, brancos e japoneses e gringos sambando? Ala laô, ô ô, ô.
E no meio das cinzas começa a pergunta nova sobre os 40 dias da Quaresma que se seguirão. Que palavra fora de moda é esta, jejum? Confundiu tudo, agora é dieta. Qual a diferença de jejum e dieta? Quem recebeu o dom da fé entende muito bem o que serão estes 40 dias de oração e pouca comida. Ou menos comida. Ou sacrifício. Ou reflexão. Equilíbrio. Oração. Partilha.
Para nós, cozinheiros, é recomendável que falemos menos. Entremos para a cozinha para estudar um jeito de fazer comida gostosa e honesta por melhor preço. Que os cardápios sejam mais enxutos, bife com batatas e não steak aux frites de patatas bravas, no seu molho de açafrão, contrabalançado por blueberries agridoces.
Estudemos as novidades que vêm da Espanha, tem muita coisa boa. Mas, cuidado, eu fui às touradas em Madri, e quase não volto mais aqui... Conheci um espanhol natural da Catalunha, queria que eu tocasse castanhola e pegasse um touro à unha. Esta vai ser a reflexão do Alex Atala no Carnaval. Nada de foie gras, caramba, caracoles, sou do samba, não me amoles, pro Brasil eu vou fugir...
Leiamos livros que são mais difíceis de ler, mas os mais esclarecedores, como os do Carlos Alberto Dória, Jean François Revel, Michael Pollan, livros para reflexão, para aprender sobre ética na comida. O Senac vai lançar "A História do Futuro da Comida", de Warren Belasco, que também é livro de Quaresma. Precisamos parar um pouco e dar atenção à cozinha, o nosso templo, com seus deuses, a água que lava, lava, lava tudo, a água só não lava a língua desta gente. E o fogo, sem ele, já pensaram? Hora de consertar os fogões, dormir pensando em que rei sou eu, sem reinado e sem coroa, hora de rezar, hoje o bloco está mais triste sem ele, está faltando um, zum, zum, zum, está faltando um.
Hora de olhar a cozinha de muito perto. Lata d'água na cabeça, lá vai Maria, lá vai Maria! Lava a roupa e não se cansa, pela mão leva a criança... Lá vai, Maria. Com as cinzas ainda na testa, Quaresma, sei que vou morrer não sei o dia, quero morrer na cadência bonita do samba! Maior é Deus do céu e nada mais!

ninahorta@uol.com.br


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