São Paulo, segunda-feira, 26 de março de 2007

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GUILHERME WISNIK

Qualquer coisa que não fixe


Arnaldo Antunes substitui a exterioridade minimalista dos objetos por uma certa fantasia do cotidiano

SURGIDO no ambiente do rock dos anos 80, e discípulo poético do concretismo paulista, Arnaldo Antunes tornou-se parceiro musical de uma gama heterogênea de compositores, que inclui de Carlinhos Brown e Marisa Monte a Edgar Scandurra, Paulo Tatit e Alice Ruiz; de Marina Lima e Jorge Benjor a Adriana Calcanhotto, Péricles Cavalcanti, Davi Moraes e Dadi Carvalho; ou, ainda, de Paulinho da Viola à banda de rock portuguesa Clã.
Tamanha abrangência só é possível porque passa pelo filtro de uma dicção pessoal afinada pelas dissonâncias e uma inteligência visual altamente consciente do seu papel cênico de artista-performer. Vale dizer: na estranha dança de andróide, que parece misturar "street dance" com o passo miudinho do samba-de-roda, no figurino fashion desleixado ou na oscilação da voz entre o grave profundo e o agudo anasalado com as vogais abertas, emitidos de forma relaxada e natural.
Tudo isso foi apresentado de modo concentrado na sua recente e curta temporada de shows do disco "Qualquer" no teatro Fecap (de 9 a 18 de março), com uma formação enxuta de cordas e teclados sem instrumentos percussivos, favorecendo o intimismo e a unidade dos timbres em climas oníricos. É que a sua poética intransitiva, feita de enumerações de imagens concretas (nome, coisa, pedra, som, pessoa, ninguém), sempre apresentou as coisas na sua integridade física, relativizada, no entanto, pelo modo associativo como são arranjadas.

Cotidiano
Ocorre que, nos seus últimos trabalhos, a exterioridade minimalista dos objetos vai sendo substituída por uma fantasia do cotidiano: esperar o vaga-lume piscar outra vez, ir de bicicleta ao mercado, brincar com o seu neném, conhecer o espaço sideral a bordo de um balão de são João ou de uma pipa de papel...
É como se a poesia cantada, sem deixar de apresentar uma coisa depois da outra, ficasse grávida de si mesma, extravasando sua própria estrutura (corpo). Quer dizer que o seu conteúdo passa a ser a fertilidade da linguagem e o paradoxo vital do crescimento: um corpo que já coube dentro da mãe, mas que, diante do amor, não cabe mais em si próprio, pois "tem que não ter cabimento para crescer".
Em "Para Lá", o refrão estático ("e a montanha insiste em ficar lá parada") é envolvido por uma sucessão de imagens em permanente impulso de continuidade e expansão: "Se toda escada esconde uma rampa", "ampara o horizonte uma ponte", "cada eco leva uma voz adiante". Antunes busca, com as canções, desvelar as coisas que se expandem mas não estabilizam, porque são fendidas por dentro: "Qualquer fresta furo vão de muro/ fenda boca onde não se caiba", "qualquer dobra nesga rasgo risco/ onde a prega a ruga o vinco da pele apareça", "qualquer curva de qualquer destino que desfaça o curso de qualquer certeza". Não aquilo que se conserva puro, intocado ou retocado, mas a pureza possível das coisas em transformação: "Qualquer coisa que não fique ilesa/ qualquer coisa que não fixe".


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