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GUILHERME WISNIK
Qualquer coisa que não fixe
Arnaldo Antunes substitui
a exterioridade minimalista dos objetos por uma certa fantasia do cotidiano
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SURGIDO no ambiente do rock
dos anos 80, e discípulo poético do concretismo paulista, Arnaldo Antunes tornou-se parceiro
musical de uma gama heterogênea
de compositores, que inclui de Carlinhos Brown e Marisa Monte a Edgar
Scandurra, Paulo Tatit e Alice Ruiz;
de Marina Lima e Jorge Benjor a
Adriana Calcanhotto, Péricles Cavalcanti, Davi Moraes e Dadi Carvalho; ou, ainda, de Paulinho da Viola à
banda de rock portuguesa Clã.
Tamanha abrangência só é possível porque passa pelo filtro de uma
dicção pessoal afinada pelas dissonâncias e uma inteligência visual altamente consciente do seu papel cênico de artista-performer. Vale dizer: na estranha dança de andróide,
que parece misturar "street dance"
com o passo miudinho do samba-de-roda, no figurino fashion desleixado ou na oscilação da voz entre o
grave profundo e o agudo anasalado
com as vogais abertas, emitidos de
forma relaxada e natural.
Tudo isso foi apresentado de modo concentrado na sua recente e
curta temporada de shows do disco
"Qualquer" no teatro Fecap (de 9 a
18 de março), com uma formação
enxuta de cordas e teclados sem instrumentos percussivos, favorecendo o intimismo e a unidade dos timbres em climas oníricos. É que a sua
poética intransitiva, feita de enumerações de imagens concretas (nome,
coisa, pedra, som, pessoa, ninguém),
sempre apresentou as coisas na sua
integridade física, relativizada, no
entanto, pelo modo associativo como são arranjadas.
Cotidiano
Ocorre que, nos seus últimos trabalhos, a exterioridade minimalista dos objetos vai sendo substituída
por uma fantasia do cotidiano: esperar o vaga-lume piscar outra vez,
ir de bicicleta ao mercado, brincar
com o seu neném, conhecer o espaço sideral a bordo de um balão de
são João ou de uma pipa de papel...
É como se a poesia cantada, sem
deixar de apresentar uma coisa depois da outra, ficasse grávida de si
mesma, extravasando sua própria
estrutura (corpo). Quer dizer que o
seu conteúdo passa a ser a fertilidade da linguagem e o paradoxo vital
do crescimento: um corpo que já
coube dentro da mãe, mas que,
diante do amor, não cabe mais em
si próprio, pois "tem que não ter cabimento para crescer".
Em "Para Lá", o refrão estático
("e a montanha insiste em ficar lá
parada") é envolvido por uma sucessão de imagens em permanente
impulso de continuidade e expansão: "Se toda escada esconde uma
rampa", "ampara o horizonte uma
ponte", "cada eco leva uma voz
adiante". Antunes busca, com as
canções, desvelar as coisas que se
expandem mas não estabilizam,
porque são fendidas por dentro:
"Qualquer fresta furo vão de muro/
fenda boca onde não se caiba",
"qualquer dobra nesga rasgo risco/
onde a prega a ruga o vinco da pele
apareça", "qualquer curva de qualquer destino que desfaça o curso de
qualquer certeza". Não aquilo que
se conserva puro, intocado ou retocado, mas a pureza possível das coisas em transformação: "Qualquer
coisa que não fique ilesa/ qualquer
coisa que não fixe".
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