São Paulo, sábado, 26 de maio de 2007

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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Cabaret mordaz

Anômalos, a fisiologia, o desejo e o metabolismo assumem as rédeas de pacatos chás em família

HÁ MUITO nossa comédia deixou de ser divina. Aos poucos e pálidos esboços de sorriso que Dante deixou escapar, preferimos o riso de corpo inteiro, simples escancarado e convulso. Mais à vontade na gargalhada satírica, a boa literatura contemporânea tende a corrigir esta alegria rabelaisiana com dois dedos providenciais de mal-estar. Nem toda simplicidade é sinônimo de harmonia, e os espasmos do corpo podem trair os resíduos pestilentos de uma história infeliz, risada carente e cariada. Como diz Adorno, a propósito de Beckett, a interioridade, coisificada, aguarda, hoje, evacuação. O homem é aquilo que come, e a boca, nestes tempos, a verdadeira janela do espírito (para não mencionar outros orifícios).
A contista gaúcha Veronica Stigger sabe fazer aflorar a dose de perturbador que, para além do meramente desagradável, a consideração do cotidiano fora dos trilhos deve trazer. Em "O Trágico e Outras Comédias" (7 Letras, 2004), encadeia anedotas corriqueiras desgovernadas pela presença impositiva do baixo corporal. Anômalos, a fisiologia, o desejo e o metabolismo assumem as rédeas de pacatos chás em família ao redor da matriarca ou de "happy hours" entre amigos com vocação para voyeurs. É a vez e a voz do corpo, ora crescendo, descomunal, como o nariz de Pinóquio, ora tomado por um câncer no reto ou convertido em chuva de falos desgarrados, primos de outro famoso apêndice nasal, o de Gogól.
O tom de amenidade recobrindo enormidades tem antecedente ilustre em Swift e local, nas crônicas de outro gaúcho, Luis Fernando Verissimo. Reaparece em "Gran Cabaret Demenzial", seu segundo livro, recém-lançado em volume ilustrado, que brinca com o kitsch e a arte gráfica de consumo, numa variedade que corresponde à experimentação de formas breves e ligeiras, marca específica da nova coletânea.
Professora de história da arte, Stigger aponta para um flerte seu com a disposição dadaísta por uma arte transgressiva e performática, adepta do choque como procedimento estético, como a chave para a compreensão do título. Como aprenderam os dadaístas, o choque perde sua contundência se continuamente repetido. A onipresença e inflação do escatológico (uma família às voltas com uma minhoca de estimação que sonha em ser sucuri, em "Marta e o Minhocão"; um jovem casal que, acuado pela especulação imobiliária, muda-se para o corpo de um amigo, entrando pela porta de trás, em "Cubículo") arriscam-se à banalização da rotina.
Mas uma ligeira torção e, voilà, o grotesco volta a incomodar, como em "Festa de Casamento", espetacularizando um racismo muito brasileiro, tolerado quando disfarçado em gracejo ("não vá comer os negrinhos errados", trocadilho com o nome sulista dos brigadeiros) no circo das recepções pequeno-burguesas.
Nestes momentos, Veronica Stigger dá seu passo, mordaz, além do riso ameno da crônica.


GRAN CABARET DEMENZIAL
Autor:
Veronica Stigger
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 29,50 (128 págs.)
Avaliação: bom


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