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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
Cabaret mordaz
Anômalos, a fisiologia, o desejo e o metabolismo assumem as rédeas de pacatos chás em família
HÁ MUITO nossa comédia deixou de ser divina. Aos poucos e pálidos esboços de sorriso que Dante deixou escapar, preferimos o riso de corpo inteiro, simples escancarado e convulso. Mais à
vontade na gargalhada satírica, a boa
literatura contemporânea tende a
corrigir esta alegria rabelaisiana
com dois dedos providenciais de
mal-estar. Nem toda simplicidade é
sinônimo de harmonia, e os espasmos do corpo podem trair os resíduos pestilentos de uma história infeliz, risada carente e cariada. Como
diz Adorno, a propósito de Beckett, a
interioridade, coisificada, aguarda,
hoje, evacuação. O homem é aquilo
que come, e a boca, nestes tempos, a
verdadeira janela do espírito (para
não mencionar outros orifícios).
A contista gaúcha Veronica Stigger sabe fazer aflorar a dose de perturbador que, para além do meramente desagradável, a consideração
do cotidiano fora dos trilhos deve
trazer. Em "O Trágico e Outras Comédias" (7 Letras, 2004), encadeia
anedotas corriqueiras desgovernadas pela presença impositiva do baixo corporal. Anômalos, a fisiologia, o
desejo e o metabolismo assumem as
rédeas de pacatos chás em família ao
redor da matriarca ou de "happy
hours" entre amigos com vocação
para voyeurs. É a vez e a voz do corpo, ora crescendo, descomunal, como o nariz de Pinóquio, ora tomado
por um câncer no reto ou convertido
em chuva de falos desgarrados, primos de outro famoso apêndice nasal, o de Gogól.
O tom de amenidade recobrindo
enormidades tem antecedente ilustre em Swift e local, nas crônicas de
outro gaúcho, Luis Fernando Verissimo. Reaparece em "Gran Cabaret
Demenzial", seu segundo livro, recém-lançado em volume ilustrado,
que brinca com o kitsch e a arte gráfica de consumo, numa variedade
que corresponde à experimentação
de formas breves e ligeiras, marca
específica da nova coletânea.
Professora de história da arte,
Stigger aponta para um flerte seu
com a disposição dadaísta por uma
arte transgressiva e performática,
adepta do choque como procedimento estético, como a chave para a
compreensão do título. Como
aprenderam os dadaístas, o choque
perde sua contundência se continuamente repetido. A onipresença e
inflação do escatológico (uma família às voltas com uma minhoca de estimação que sonha em ser sucuri,
em "Marta e o Minhocão"; um jovem casal que, acuado pela especulação imobiliária, muda-se para o
corpo de um amigo, entrando pela
porta de trás, em "Cubículo") arriscam-se à banalização da rotina.
Mas uma ligeira torção e, voilà, o
grotesco volta a incomodar, como
em "Festa de Casamento", espetacularizando um racismo muito brasileiro, tolerado quando disfarçado
em gracejo ("não vá comer os negrinhos errados", trocadilho com o nome sulista dos brigadeiros) no circo
das recepções pequeno-burguesas.
Nestes momentos, Veronica Stigger
dá seu passo, mordaz, além do riso
ameno da crônica.
GRAN CABARET DEMENZIAL
Autor: Veronica Stigger
Editora: Cosacnaify
Quanto: R$ 29,50 (128 págs.)
Avaliação: bom
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