São Paulo, segunda-feira, 26 de junho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GUILHERME WISNIK

Amor ao Zico


A melancolia do jogador ao cantar o hino do Brasil cala fundo em quem aprendeu com ele a respeitar o mundo

O PRIMEIRO jogo a que assisti no estádio, e um dos primeiros de que me lembro, foi um amistoso entre Brasil e Ajax da Holanda. Deve ter sido em 1979, e o Zico era vaiado no Morumbi. Expressão, ainda, daquele bairrismo tolo entre paulistas e cariocas de tempos atrás. Nesse jogo, como em muitos outros, Zico calou os otários. Mesmo assim, cresci ouvindo dizerem que ele "só jogava no Maracanã"...
Naquela época, Zico era ainda o ponta-de-lança de explosão, no estilo de Pelé, que arrancava deixando uma fila de adversários caídos no chão para entrar no gol com bola e tudo e cujo ímpeto vertical e agressivo combinava com o próprio desenho afinado do seu rosto: nariz pontiagudo e caninos pronunciados.
Para uma criança, como eu, o jogo era ainda um magma em desordem, que tinha irrupções de esclarecimento naqueles gols incríveis, como clarões no deserto. Por isso, para mim, esses acontecimentos precederam em muito as artes e a arquitetura na inauguração de qualquer consciência sobre as noções de forma e de espaço.
Depois, com a idade e as contusões, Zico se especializou em ser o maestro organizador do jogo, com uma visão integral do campo-tabuleiro como uma totalidade em deslocamentos mínimos. Assim, passou a revelar como ninguém os espaços vazios, a profundidade impossível, com enfiadas que, num lampejo, vazavam o cerco de sólidas retrancas deixando os companheiros livres para marcar.
Exemplos disso são o primeiro gol de Nunes contra o Liverpool no Mundial Interclubes, em 81, e os golaços de Júnior e Sócrates na Copa de 82, contra Argentina e Itália. De aríete a enxadrista, Zico conservou uma agudeza como que condensada nas cobranças de falta, sua assinatura e obra mestra. Sempre a mesma cena: bola estufando a rede e goleiro imóvel, meduzado pela estranha hipnose daquele instante.
Acontece que, como todos sabem, sua carreira ficou marcada pelo peso do fracasso, com as derrotas nas Copas de 82 e 86. E, com ela, toda uma geração de jogadores e torcedores, que tiveram de aprender a duras penas a viver com o travo do mundo.
Àquela altura, eu tinha para mim o futebol de Zico como algo acima da simples beleza: a própria existência do bem. Seu poder de afirmação, capaz de calar as vaias no Morumbi, era a imagem mais contundente do que é vencer.
Paradoxalmente, a fragilidade das derrotas subseqüentes, combinada a essa emoção primeira, só fez aumentar essa certeza, agora resguardada, diante do risco de não ser compreendida em sua obviedade.
A melancolia do olhar de Zico ao cantar o hino do Brasil, no último jogo, cala fundo em todos nós, que aprendemos com ele a respeitar a opacidade do mundo (os adversários, o destino...), como um escultor que trabalha na resistência da pedra aquilo que entende por alegria e que sabe ser uma perda. E, por isso, diante da aparente facilidade da vitória para as novas gerações, que comemoramos, não deixo de me irmanar a ele, no seu fardo de voltar à Copa e se ver eliminado pelo próprio Brasil em dia de gala.


Texto Anterior: Arrigo lança em disco sua homenagem a Itamar
Próximo Texto: Documentário: Programa compila as asneiras de Aznar
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.