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GUILHERME WISNIK
Amor ao Zico
A melancolia do jogador ao
cantar o hino do Brasil cala fundo em quem aprendeu com ele a respeitar o
mundo
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O PRIMEIRO jogo a que assisti
no estádio, e um dos primeiros de que me lembro, foi um
amistoso entre Brasil e Ajax da Holanda. Deve ter sido em 1979, e o Zico era vaiado no Morumbi. Expressão, ainda, daquele bairrismo tolo
entre paulistas e cariocas de tempos
atrás. Nesse jogo, como em muitos
outros, Zico calou os otários. Mesmo
assim, cresci ouvindo dizerem que
ele "só jogava no Maracanã"...
Naquela época, Zico era ainda o
ponta-de-lança de explosão, no estilo de Pelé, que arrancava deixando
uma fila de adversários caídos no
chão para entrar no gol com bola e
tudo e cujo ímpeto vertical e agressivo combinava com o próprio desenho afinado do seu rosto: nariz pontiagudo e caninos pronunciados.
Para uma criança, como eu, o jogo
era ainda um magma em desordem,
que tinha irrupções de esclarecimento naqueles gols incríveis, como
clarões no deserto. Por isso, para
mim, esses acontecimentos precederam em muito as artes e a arquitetura na inauguração de qualquer
consciência sobre as noções de forma e de espaço.
Depois, com a idade e as contusões, Zico se especializou em ser o
maestro organizador do jogo, com
uma visão integral do campo-tabuleiro como uma totalidade em deslocamentos mínimos. Assim, passou a
revelar como ninguém os espaços
vazios, a profundidade impossível,
com enfiadas que, num lampejo, vazavam o cerco de sólidas retrancas
deixando os companheiros livres
para marcar.
Exemplos disso são o primeiro gol
de Nunes contra o Liverpool no
Mundial Interclubes, em 81, e os golaços de Júnior e Sócrates na Copa
de 82, contra Argentina e Itália. De
aríete a enxadrista, Zico conservou
uma agudeza como que condensada
nas cobranças de falta, sua assinatura e obra mestra. Sempre a mesma
cena: bola estufando a rede e goleiro
imóvel, meduzado pela estranha
hipnose daquele instante.
Acontece que, como todos sabem,
sua carreira ficou marcada pelo peso
do fracasso, com as derrotas nas Copas de 82 e 86. E, com ela, toda uma
geração de jogadores e torcedores,
que tiveram de aprender a duras penas a viver com o travo do mundo.
Àquela altura, eu tinha para mim o
futebol de Zico como algo acima da
simples beleza: a própria existência
do bem. Seu poder de afirmação, capaz de calar as vaias no Morumbi,
era a imagem mais contundente do
que é vencer.
Paradoxalmente, a fragilidade das
derrotas subseqüentes, combinada
a essa emoção primeira, só fez aumentar essa certeza, agora resguardada, diante do risco de não ser compreendida em sua obviedade.
A melancolia do olhar de Zico ao
cantar o hino do Brasil, no último jogo, cala fundo em todos nós, que
aprendemos com ele a respeitar a
opacidade do mundo (os adversários, o destino...), como um escultor
que trabalha na resistência da pedra
aquilo que entende por alegria e que
sabe ser uma perda. E, por isso, diante da aparente facilidade da vitória
para as novas gerações, que comemoramos, não deixo de me irmanar
a ele, no seu fardo de voltar à Copa e
se ver eliminado pelo próprio Brasil
em dia de gala.
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