São Paulo, sexta-feira, 26 de setembro de 2008

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Crítica/ "Fay Grim"

Hartley questiona paranóia americana

Sensação do cinema independente dos anos 90, diretor abandona a obsessão pela nouvelle vague e aborda espionagem

Em novo longa, diretor lançado com "As Confissões de Henry Fool" abandona obsessão da estética do cinema europeu


INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

A julgar por "Fay Grim", Hal Hartley entra no século 21 conformado em ser apenas um americano.
Não é pouca coisa, já que o ponto fraco de seu cinema sempre foi, de certo modo, a obsessão em parecer europeu, de preferência nouvelle vague.
Não podemos fugir a nós mesmos. O que se aplica a Hartley aplica-se também à concepção geral de "Fay Grim", em que tudo começa quando Ned, filho de Fay (Parker Posey), é advertido no colégio por exibir aos colegas imagens pornográficas contidas numa engenhoca que recebeu pelo correio.
Fay vê aí o dedo do pai, o Henry Fool de "As Confissões de Henry Fool" (1997), filme que relançou a carreira de Hartley no fim do século passado.
Como Henry sumiu do mapa, Fay busca uma figura paterna para o garoto em seu irmão, o poeta Simon Grim, hoje preso. Primeiro movimento: Hartley recorre à proximidade entre literatura (arte em geral) e marginalidade, que trabalhará intensamente no filme. Remete-nos, assim, à poesia beatnik de forma mais específica.
Segundo movimento: entra em cena Fulbright (Jeff Goldblum), agente secreto. A partir daí, o filme se enreda numa trama de espionagem (não importa muito o assunto, mas em princípio diz respeito a manuscritos de um diário do hoje desaparecido Henry Fool, que trariam mensagens secretas) não raro desprovida de sentido.
Esse é o aspecto mais arriscado e perigoso da narrativa. Todos sabemos que a espionagem é um sustentáculo da indústria, e que ficou bem abalado com o fim da Guerra Fria. Se tomarmos a série mais bem-sucedida do gênero nos últimos anos, a de Jason Bourne, o que se tem ali é uma quantidade de agentes secretos que, na falta de um inimigo, desenvolvem uma febril atividade autofágica.
Em "Fay Grim" não é tão diferente. Existem esses diários que um editor primeiro recusa-se a publicar, por não terem valor, mas depois corrige-se, ao ver que os manuscritos podem vender como água, e pronuncia a antológica frase: "Tudo que é vendável é editável".
Mas o imbróglio está longe de ser literário. O diário poderia conter segredos que interessam a quase todas as nações do mundo: franceses, israelenses, russos, árabes etc. Não são nada e são tudo. São apenas expressão de um mundo em que tudo se tornou possível e ninguém sabe quem é quem.
Evidentemente, o controle de uma ficção dessa natureza não é fácil, e tem-se a impressão de que Hartley sucumbirá à atração do "nonsense" e às múltiplas iscas lançadas.
Ao final, "Fay Grim" preserva sua integridade, como a nos lembrar que não é o filme que perdeu o sentido, o mundo é que anda mais confuso do que costumava ser. A observação reticente que Hartley manifestou desde sempre em relação aos EUA aqui parece vir em ajuda à sua proposta: é um olhar distanciado e irônico o que "Fay Grim" dirige não apenas ao sistema paranóico que Washington legou ao mundo, como à ficção (quase sempre ordinária) daí decorrente, que tem em Hollywood o seu grande apoio.


FAY GRIM
Produção: EUA/Alemanha, 2006
Direção: Hal Hartley
Com: Parker Posey, Jeff Goldblum
Onde: estréia hoje nos Espaços Unibanco Augusta e Pompéia e no Reserva Cultural
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 14 anos
Avaliação: bom




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