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Crítica/ "Fay Grim"
Hartley questiona paranóia americana
Sensação do cinema independente dos anos 90, diretor abandona a obsessão pela nouvelle vague e aborda espionagem
Em novo longa, diretor lançado com "As Confissões de Henry Fool" abandona obsessão da estética do cinema europeu
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
A julgar por "Fay Grim",
Hal Hartley entra no
século 21 conformado
em ser apenas um americano.
Não é pouca coisa, já que o ponto fraco de seu cinema sempre
foi, de certo modo, a obsessão
em parecer europeu, de preferência nouvelle vague.
Não podemos fugir a nós
mesmos. O que se aplica a Hartley aplica-se também à concepção geral de "Fay Grim", em
que tudo começa quando Ned,
filho de Fay (Parker Posey), é
advertido no colégio por exibir
aos colegas imagens pornográficas contidas numa engenhoca
que recebeu pelo correio.
Fay vê aí o dedo do pai, o
Henry Fool de "As Confissões
de Henry Fool" (1997), filme
que relançou a carreira de Hartley no fim do século passado.
Como Henry sumiu do mapa,
Fay busca uma figura paterna
para o garoto em seu irmão, o
poeta Simon Grim, hoje preso.
Primeiro movimento: Hartley recorre à proximidade entre literatura (arte em geral) e
marginalidade, que trabalhará
intensamente no filme. Remete-nos, assim, à poesia beatnik
de forma mais específica.
Segundo movimento: entra
em cena Fulbright (Jeff Goldblum), agente secreto. A partir
daí, o filme se enreda numa trama de espionagem (não importa muito o assunto, mas em
princípio diz respeito a manuscritos de um diário do hoje desaparecido Henry Fool, que
trariam mensagens secretas)
não raro desprovida de sentido.
Esse é o aspecto mais arriscado e perigoso da narrativa. Todos sabemos que a espionagem
é um sustentáculo da indústria,
e que ficou bem abalado com o
fim da Guerra Fria. Se tomarmos a série mais bem-sucedida
do gênero nos últimos anos, a
de Jason Bourne, o que se tem
ali é uma quantidade de agentes secretos que, na falta de um
inimigo, desenvolvem uma febril atividade autofágica.
Em "Fay Grim" não é tão diferente. Existem esses diários
que um editor primeiro recusa-se a publicar, por não terem valor, mas depois corrige-se, ao
ver que os manuscritos podem
vender como água, e pronuncia
a antológica frase: "Tudo que é
vendável é editável".
Mas o imbróglio está longe
de ser literário. O diário poderia conter segredos que interessam a quase todas as nações do
mundo: franceses, israelenses,
russos, árabes etc. Não são nada e são tudo. São apenas expressão de um mundo em que
tudo se tornou possível e ninguém sabe quem é quem.
Evidentemente, o controle
de uma ficção dessa natureza
não é fácil, e tem-se a impressão de que Hartley sucumbirá à
atração do "nonsense" e às
múltiplas iscas lançadas.
Ao final, "Fay Grim" preserva
sua integridade, como a nos
lembrar que não é o filme que
perdeu o sentido, o mundo é
que anda mais confuso do que
costumava ser. A observação
reticente que Hartley manifestou desde sempre em relação
aos EUA aqui parece vir em ajuda à sua proposta: é um olhar
distanciado e irônico o que
"Fay Grim" dirige não apenas
ao sistema paranóico que Washington legou ao mundo, como
à ficção (quase sempre ordinária) daí decorrente, que tem em
Hollywood o seu grande apoio.
FAY GRIM
Produção: EUA/Alemanha, 2006
Direção: Hal Hartley
Com: Parker Posey, Jeff Goldblum
Onde: estréia hoje nos Espaços Unibanco Augusta e Pompéia e no Reserva
Cultural
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 14 anos
Avaliação: bom
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