São Paulo, sábado, 26 de outubro de 2002

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RODAPÉ

O "Tao" da net

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS

Segundo a lenda, foi em torno do século 6 a.C. que o filósofo chinês Lao Tzu escreveu seu "Tao Te King", um dos mais famosos livros sagrados da humanidade. Sinólogos e arqueólogos, duvidando da existência do autor, cujo nome quer dizer "velho mestre", acreditam, porém, que seus 81 capítulos foram compilados no século 3 a.C., a partir de um legado de tradições orais.
O volume, reunindo provérbios e ditados, é um repertório em versos ou num tipo de prosa poética de conselhos, cujo intuito é o de permitir ao leitor que leve uma vida tranquila e, ao governante, que governe sem problemas, constituindo, em resumo, uma síntese de manuais de auto-ajuda com ecos retroativos de "O Príncipe", de Maquiavel.
Como outros produtos da fraseologia popular em toda parte, seus ditados valem-se de duplos sentidos, jogos de palavras, paralelismos e brincadeiras. Além das transformações da língua chinesa, que, em mais de dois milênios, tornaram muito disso incompreensível, uma sucessão de copistas contribuiu, com sua quota de erros, para obscurecer ainda mais a obra, enquanto seu estatuto religioso converteu obscuridades acidentais em mistério intencional e convite às interpretações esotéricas.
Em companhia do segmento do "Mahabarata" conhecido como "Bhagavad Gita", o "Tao Te King" é o mais traduzido dos clássicos orientais. Somente em inglês há dezenas de versões para todas as preferências e gostos, das religiosas às filológicas, das poéticas às idióticas. O mesmo se repete em todas as grandes e pequenas línguas ocidentais, com a exceção não inteiramente inesperada da nossa. Talvez por não ter procurado o suficiente, não encontrei ainda uma versão para o português que parecesse sinológica ou literariamente satisfatória.
Uma constatação dessas, para um tradutor de poesia, equivale a um desafio. Faz tempo que coleciono versões do "Tao", comentários etc. com a intenção perversa de traduzi-lo. Há, porém, um pequeno empecilho: não sei chinês. Mas, curiosamente, quando se trata de traduzir poesia, esse não é o obstáculo mais sério. E o livro, que poderia se chamar "Tratado da Rota e da Retidão", conta com a vantagem de ser curtíssimo, compondo-se de cerca de 5.000 caracteres, cada qual correspondendo mais ou menos a uma palavra. Aliás, um de seus apelidos, justamente "livro das 5.000 palavras", é que levou Po Tchu-I (772-846), poeta da dinastia T'ang, a comentar zombeteiro:
"Quem sabe nada fala
quem fala nada sabe,
Lao Tzu mesmo o falava
em 5.000 palavras".
O que poderia tornar possível (ou menos impossível) uma tradução é nada mais nada menos do que o repertório inesgotável da internet. Há inúmeros sites dedicados ao assunto contendo não só dezenas de traduções para inúmeros idiomas como também transcrições fonéticas (algumas sonorizadas), explicações elaboradas de cada ideograma do livro e de sua sintaxe, além de todo e qualquer recurso com que um estudioso ou um tradutor possa sonhar. Eis alguns links: www.geocities.com/onkellotus/index.html; www.taoteching.co.uk; www.clas.ufl.edu/users/gthursby/taoism/index.htm; www.taoresource.com.
Basta visitá-los para constatar quão redondamente equivocados estavam aqueles que viam alguma contradição entre tecnologia e alta cultura: a aliança entre ambas é o que de melhor está acontecendo nos dias de hoje.


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