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RODAPÉ
O "Tao" da net
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS
Segundo a lenda, foi em torno do século 6 a.C. que o filósofo chinês Lao Tzu escreveu seu
"Tao Te King", um dos mais famosos livros sagrados da humanidade. Sinólogos e arqueólogos,
duvidando da existência do autor,
cujo nome quer dizer "velho mestre", acreditam, porém, que seus
81 capítulos foram compilados no
século 3 a.C., a partir de um legado de tradições orais.
O volume, reunindo provérbios
e ditados, é um repertório em versos ou num tipo de prosa poética
de conselhos, cujo intuito é o de
permitir ao leitor que leve uma vida tranquila e, ao governante, que
governe sem problemas, constituindo, em resumo, uma síntese
de manuais de auto-ajuda com
ecos retroativos de "O Príncipe",
de Maquiavel.
Como outros produtos da fraseologia popular em toda parte,
seus ditados valem-se de duplos
sentidos, jogos de palavras, paralelismos e brincadeiras. Além das
transformações da língua chinesa, que, em mais de dois milênios,
tornaram muito disso incompreensível, uma sucessão de copistas contribuiu, com sua quota
de erros, para obscurecer ainda
mais a obra, enquanto seu estatuto religioso converteu obscuridades acidentais em mistério intencional e convite às interpretações
esotéricas.
Em companhia do segmento do
"Mahabarata" conhecido como
"Bhagavad Gita", o "Tao Te King"
é o mais traduzido dos clássicos
orientais. Somente em inglês há
dezenas de versões para todas as
preferências e gostos, das religiosas às filológicas, das poéticas às
idióticas. O mesmo se repete em
todas as grandes e pequenas línguas ocidentais, com a exceção
não inteiramente inesperada da
nossa. Talvez por não ter procurado o suficiente, não encontrei ainda uma versão para o português
que parecesse sinológica ou literariamente satisfatória.
Uma constatação dessas, para
um tradutor de poesia, equivale a
um desafio. Faz tempo que coleciono versões do "Tao", comentários etc. com a intenção perversa
de traduzi-lo. Há, porém, um pequeno empecilho: não sei chinês.
Mas, curiosamente, quando se
trata de traduzir poesia, esse não é
o obstáculo mais sério. E o livro,
que poderia se chamar "Tratado
da Rota e da Retidão", conta com
a vantagem de ser curtíssimo,
compondo-se de cerca de 5.000
caracteres, cada qual correspondendo mais ou menos a uma palavra. Aliás, um de seus apelidos,
justamente "livro das 5.000 palavras", é que levou Po Tchu-I (772-846), poeta da dinastia T'ang, a
comentar zombeteiro:
"Quem sabe nada fala
quem fala nada sabe,
Lao Tzu mesmo o falava
em 5.000 palavras".
O que poderia tornar possível
(ou menos impossível) uma tradução é nada mais nada menos
do que o repertório inesgotável da
internet. Há inúmeros sites dedicados ao assunto contendo não só
dezenas de traduções para inúmeros idiomas como também
transcrições fonéticas (algumas
sonorizadas), explicações elaboradas de cada ideograma do livro
e de sua sintaxe, além de todo e
qualquer recurso com que um estudioso ou um tradutor possa sonhar. Eis alguns links: www.geocities.com/onkellotus/index.html; www.taoteching.co.uk;
www.clas.ufl.edu/users/gthursby/taoism/index.htm; www.taoresource.com.
Basta visitá-los para constatar
quão redondamente equivocados
estavam aqueles que viam alguma
contradição entre tecnologia e alta cultura: a aliança entre ambas é
o que de melhor está acontecendo
nos dias de hoje.
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