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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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MÔNICA BERGAMO

Operários da ópera

0 soprano inglesa Morenike Fadayomi, 40, foi a primeira do elenco a chegar ao Teatro Municipal, na tarde da quarta-feira, 22 -dia do ensaio geral de "Salomé", ópera de Richard Strauss baseada em texto de Oscar Wilde que estrearia na sexta-feira.
 

No teatro ainda vazio, ela aquece a voz e prova o figurino: body e sutiã cor de pele com miçangas. O azul da sapatilha é reprovado pela diretora, Ana Carolina, que prefere cor da pele. Não há nenhuma no tamanho do pé da cantora, 37. "Manda pintar", sugere Ana.

No camarim ao lado, a meio-soprano brasileira Céline Imbert, que interpreta a mãe de Salomé, Herodíades, tem seu próprio séquito de camareiras, cabeleireiras e costureiras. Depois do ensaio, ela planejava ir para casa, no centro de São Paulo, para ficar muda, sem atender o telefone nem receber visitas. Faria também massagem, palavras cruzadas e lavaria louça. "Nossa vida não tem o glamour que as pessoas pensam", conta. "A gente não sai de casa."
 

Estrelas de um dos mais festejados espetáculos de ópera do ano -a última montagem de "Salomé" por aqui foi em 1923- Morenike, Celine e os outros 13 cantores que com elas dividem o palco do Municipal desde a sexta-feira impressionam pela simplicidade. O cachê de Morenike é de US$ 3.000 por apresentação. O dos outros, até um terço a menos.
 

Rosa Casalli, coordenadora de produção, conta que os únicos pedidos feitos pelos cantores para incrementar os camarins durante a temporada foram água e chás -de qualquer sabor. Nada que lembre a vez em que, numa produção de Free Jazz, Rosa revirou a cidade em busca de 25 patas de caranguejo para o cantor George Benson. Achou... e ele comeu somente duas. Rosa é a "babá" dos cantores e músicos. Carrega na cintura uma bolsa grande o suficiente para abrigar uma agenda, celular, calculadora, ingressos, cronograma da ópera, minilanterna, curativos e colírio.
 

Dentro do camarim, o toque estridente do celular de uma das cabeleireiras incomoda Céline, que faz cara feia. "Detesto barulho." A presença dos cantores líricos impõe silêncio ao Municipal. Os cerca de 80 técnicos, figurantes, bailarinos e produtores correm contra o tempo, mas sem barulho. Cantores líricos em geral não fumam, não bebem e, perto dos dias de apresentação, ficam concentrados, como atletas antes de grandes competições. Os funcionários, por isso, são orientados a não ficar agitados perto deles.
 

Enquanto Rosa cuida dos cantores, o inspetor da orquestra Carlos Nunes, 48, limpa o pódio, local de onde o maestro rege a orquestra, no fosso localizado entre o palco e a platéia. Seu trabalho é mais ou menos como o de um bedel de escola, mas cuidando dos 111 músicos da orquestra. "Sou o chato que faz o meio de campo entre o maestro e os músicos". É ele quem controla os horários de ensaio e convoca os membros da orquestra para o teatro -cada tipo de instrumento ensaia em momentos diferentes: instrumentos de corda, por exemplo, ensaiam em momento diferente dos de percussão.
 

Em dias de apresentação no Municipal, ele chega duas horas antes para checar se o palco está limpo, se as luzes funcionam, se tudo, enfim, está no lugar. Quando a orquestra viaja, ele vai na frente com dez dias de antecedência. Se a apresentação for ao ar livre, confere a trajetória do sol: o calor dilata os instrumentos e altera a afinação.
 

O cenotécnico Aníbal Marques, o Pelé, 44, acaba de completar o jubileu de prata no Municipal. Ele ganha R$ 2.000 e mora em Itaquera. Cuida de uma equipe de 20 maquinistas, contra-regras, iluminadores e sonoplastas. No dia da estréia da ópera "Carmen", teve que voltar correndo de Brasília para consertar uma porta de acrílico e vidro de 11 m de altura e 12 m de largura, que fazia as vezes de cortina e não abria de jeito nenhum.
 

O cenário de "Salomé" leva a assinatura de Henrique Lanfranchi. A quantidade de isopor usada, de 70 m 3, se empilhada, ficaria com 10 m de altura, quase o tamanho de um prédio de três andares. Uma bola de ferro representa um calabouço dentro do qual fica preso um dos personagens, João Batista (o barítono Donnie Ray Albert). Para evitar que bola e barítono simplesmente rolassem palco abaixo, foi preciso calcular o peso da estrutura de forma proporcional aos cem quilos do cantor. Parece piada, mas imprevistos até piores já aconteceram. As costureiras contam que um cantor perdeu as calças em pleno palco, pois era gordo e se recusou a usar suspensório.
 

A maior preocupação dos diretores e produtores do teatro é, claro, com a voz dos músicos. Na montagem de "Madama Butterfly", em 2002, o russo Andrej Lantsov, protagonista do espetáculo, comeu salgadinhos nas barraquinhas de rua que ficam perto do Municipal. Teve gastroenterite e perdeu a voz. A diretora Ana Carolina conta que, num ensaio de "Salomé", a soprano Morenike perdeu sua garrafinha de mel. "Andei pela coxia de quatro procurando", diz Ana.
 

Números: o orçamento anual do Municipal é de R$ 18 milhões. O maestro Ira Levin ganha US$ 90 mil/ano de cachê. "Salomé" custará até R$ 750 mil. Cinco meses de trabalho e 80 "operários" são necessários para só cinco apresentações (uma hoje, as próximas nos dias 28, 30 e 1º). Em novembro, outra ópera tomará o Municipal. A montagem de "Os Contos de Hoffmann", de Offenbach, que, até semanas atrás, estava ameaçada por falta de dinheiro, terá a participação de até 140 trabalhadores.


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