São Paulo, sexta-feira, 26 de novembro de 2004

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Os homens do presidente

João Moreira Salles e Eduardo Coutinho falam sobre a produção de seus filmes, que têm Lula como figura central

TEREZA NOVAES
DA REPORTAGEM LOCAL

A estréia nacional hoje dos documentários "Peões", dirigido por Eduardo Coutinho, 71, e "Entreatos", de João Moreira Salles, 42, coloca não apenas seus nomes -já consagrados dentro do gênero- em destaque, mas acende um holofote (ou uma fogueira, dependendo do ponto de vista) sobre o presidente Lula, que faz a ponte entre os filmes.
Ele é a estrela de "Entreatos", que mostra os bastidores da reta final da campanha que o levou à Presidência, e dínamo de "Peões", que enfoca os companheiros de Lula nas greves da região do ABC no final dos anos 70.
Mesmo antes da estréia, os filmes já causam polêmica. Uma delas é o corte da entrevista com Luiza de Farias, 66, a funcionária da cantina do sindicato que disse que "Lula bebia, sim", em "Peões". Este é um dos episódios abordados na entrevista que os diretores concederam à Folha.
 

A ESCOLHA DE LULA
João Moreira Salles -
Uma das funções do documentário é testemunhar alguma coisa, é dizer: foi assim. No caso do filme do Lula, foi um pouco esse desejo. A campanha de Lula, caso ele vencesse ou perdesse, seria histórica. Vencendo, foi a primeira vez que alguém da origem social do Lula chegou à Presidência da República no Brasil. Isso é histórico, independe de qualquer julgamento sobre sua capacidade de governar. Mas o fato de que ele pode ser eleito é um dado novo na história do Brasil. Se ele perdesse, seria histórico também, seria a constatação de que alguém como o Lula, com sua origem, não pode se tornar presidente no Brasil porque há uma resistência intransponível. Havia aí um fato inequívoco, único. E achei que era bacana poder ser uma testemunha disso.

Eduardo Coutinho - Nunca tenho idéias como: "Farei um filme sobre o movimento sindical". Aquelas caras nas fotos da época é que me interessavam. Quem são essas caras? Ninguém é anônimo, né? Me interessam o homem ordinário, a grande história e a pequena história. E surgiu a possibilidade de juntar isso. [O filme] não é sobre a greve. É sobre as pessoas que têm uma trajetória que passou pelas greves. Lula está lá porque é o grande líder.

ÉTICA COM O PERSONAGEM
Salles -
A preocupação que você deve ter com o personagem é a mesma com todos, seja ele presidente, pianista, jogador de futebol, crente ou pastor de igreja. As questões precisam ser discutidas concretamente em cima de uma imagem, de uma cena. Não é só o que ele diz, mas como ele diz. Uma mesma frase dita com humor pode significar uma coisa, dita com rancor, outra. Uma é permitida, a outra talvez não seja. É um inferno ter que lidar com essas angústias, você não controla o sentido das coisas. O que me interessa no Lula é sua ambigüidade, o que me interessa em qualquer personagem é o fato de ser complexo.

Coutinho - Ela [Luiza] poderia se sentir traidora de um cara que admira, o Lula. Não foi um pedido de ninguém [retirá-la do filme]. Apenas entendi que um troço dito com inocência dois anos atrás continua sendo inocente depois da "denúncia" [a reportagem sobre os hábitos de beber do presidente, publicada pelo "New York Times"]. Mas senti que ela poderia ser prejudicada, não por ser traidora de classe, não por causa do sindicato. Vai haver uma projeção lá [em São Bernardo do Campo] e 50 pessoas que eu entrevistei foram convidadas. E sempre vai ter esta reação: "Você não deveria ter dito". Há dois anos não era nada. É terrível que isso se torne uma tempestade em copo d'água. A reação incompetente do governo de criar um caso é que tornou isso um assunto. Eu não precisava proteger o Lula, ele não precisa disso. Mas achava que precisava protegê-la.

LULA E O PT
Salles -
Eu não tenho nenhum dever de guardar ou preservar uma imagem do PT. Não filmei o PT, filmei o Lula. A autorização me foi dada por ele. Meu compromisso maior é com o Lula, não é com o presidente. É com o personagem Lula, que é rigorosamente igual ao meu compromisso com qualquer personagem que eu tenha filmado até hoje. É claro que, quando você está lidando com uma pessoa que é o presidente da República, determinadas coisas ganham outro sentido. Ele dizer, por exemplo, que toma uma pinga ganha outro sentido.

INFLUÊNCIA MÚTUA
Salles -
As discussões com o Eduardo me fizeram perceber uma coisa óbvia. Mais que o tema, o fundamental é pensar a maneira de abordá-lo. Não existe bom documentário que não seja também um raciocínio sobre o próprio documentário.
Exerço uma boa influência sobre o Eduardo: não deixar que ele se suicide simbolicamente. Não há um único filme em que o Eduardo não me ligue dizendo: "É uma desgraça, um horror". Aconteceu no "Edifício Master".

Coutinho - Mas, um dia depois do fim das filmagens do "Edifício Master", eu encontrei o João e disse: "Se a gente passar 60% da experiência que a gente teve, vai ser maravilhoso". Essa coisa de pessimismo é puro exorcismo. O dia em que eu não reclamar estarei morto.


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