|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Sorriso amarelo
Festival de stand-up comedy que
lota um teatro de SP é um pacote
mal embrulhado de humor de TV
e muita redundância; só Angela
Dip se salva, com "La Putanesca"
Pedro Molina/Divulgação
|
|
Marcela Leal, que está no ruim "Confissões de Acompanhantes", um dos espetáculos da 1ª Mostra Paulista de Stand-Up Comedy
LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA
Rir é o melhor remédio e,
em tempos de crise, o
riso fácil pode valer ouro. Foi o que provou a primeira
semana da 1ª Mostra Paulista
de Stand-Up Comedy, em que
os seis espetáculos programados lotaram o teatro Nair Bello, no shopping Frei
Caneca, em São Paulo.
O evento reúne comediantes
brasileiros que praticam o gênero consagrado pelos norte-americanos (o que explica o uso
da expressão em inglês) em que
um comediante solitário, de pé,
diante de um microfone, sustenta com uma enxurrada de
piadas ininterruptas a atenção
do público. A proposta é "formar uma plateia atenta e assídua", mas o que se vê é um pacote mal embrulhado de humor
televisivo com doses alucinantes de redundância.
Durante o século 20, uma legião de comediantes norte-americanos formatou o modelo, alguns deles radicalizando
nos temas tratados e ameaçando a ordem pública -caso de
Lenny Bruce, que no início dos
anos 60 chegou a ser preso por
suas performances e foi perseguido até morrer, em 1965.
No Brasil, se ignorarmos os
comediantes do Teatro de Revista, que desde o fim do século
19 faziam números solo na
frente da cortina fechada para a
troca de cenários, o pioneiro no
formato foi José Vasconcelos, e
comediantes como Chico Anysio e Jô Soares cansaram de lotar teatros com o gênero. Com a
internet e o YouTube, uma nova geração lançou-se nessa prática, e hoje vive-se uma febre de
consumo desse produto. Foi,
provavelmente, pelas oportunidades desse mercado aquecido que se organizou a mostra.
"Confissões"
A estreia foi com "Confissões
de Acompanhantes", espetáculo feito à maneira do stand-up.
A partir de criação de Newton
Cannito e Roberto D'Avila,
quatro atrizes fazem-se de
prostitutas, alternando-se em
solos diante do microfone.
É uma solução problemática,
visto que, das quatro, só uma
(Marcela Leal) é praticante do
gênero. Curiosamente, seu desempenho é o mais fraco, considerando-se sua dificuldade
em fazer o público rir. As outras
três (Guta Ruiz, Maíra Dvorek e
Rachel Ripani) viram-se como
podem, sendo que a mais talentosa, Dvorek, é a que obtém os
melhores resultados.
"Nocaute", de Marcelo
Mansfield, é um clássico do
stand-up brasileiro. Mansfield
vem desenvolvendo essa especialidade desde meados da década de 80. Não deixa de ser
melancólico vê-lo abandonando o estilo elegante e sutil, de
quando surgiu na cena cult
paulistana, para abraçar uma
escatologia mais rasgada.
O stand-up pode ser demolidor quando há uma exposição
sincera dos próprios demônios
e um exame cáustico das misérias humanas. Mansfield chega
perto, mas logo descamba para
comentários banais sobre "personalidades" baratas da TV.
"Hã?!" trouxe o curitibano
Diogo Portugal, criador do Clube da Comédia e um dos mais
renomados entre os humoristas que surfam na atual onda.
De uma geração intermediária,
entre Mansfield e os mais jovens, seu sítio na internet
(diogoportugal.com.br) é um
campeão de visitas. Mesmo
respeitando o princípio da autoironia, ele opta pela mediocridade na busca do riso farto.
Sustenta-se com velhos truques de provocação do público
e piadas sujas de homossexuais
que soam anacrônicas. O máximo de transgressão que consegue é trair o gênero e tocar no
violão, ao final, uma canção jocosa sobre o amor gay.
"Papo Furado" traz Fernando Caruso, um dos praticantes
mais jovens que, na combinação com aparições em humorísticos de TV, vem atraindo
público aos teatros para vê-lo
ao vivo. Ator premiado no Rio e
integrante do grupo carioca
Comédia em Pé, decepciona.
Aparentemente despretensioso, centra sua apresentação
num desfiar de maledicências
sobre nomes da MPB, o que soa
arrogante e oportunista. Não
que o humor do gênero não tenha que ser corrosivo, mas, de
preferência, a partir das próprias mazelas. Seu espezinhar
de celebridades soa como um
chutar cachorros mortos.
"Fora do Normal" dá sequência à exibição dos jovens
atores que combinam TV e teatro para popularizar o stand-up. Fábio Porchat é um talento
histriônico. Sanguíneo e quase
histérico, usa mais o corpo que
o colega do Comédia em Pé.
Seu desempenho é mais interessante porque trabalha pouco com baixarias escatológicas
e muito com experiências no
cotidiano, de que se serve com
inteligência. De modo geral,
encarna o espírito do stand-up,
ou seja, um olhar aguçado que
transforma tudo o que toca em
piada, ainda que aos berros.
Estranha no ninho
"La Putanesca", de Angela
Dip, traz uma atriz experiente
em espetáculos solo, que evoca
a tradição de performers americanas, como Karen Finley,
Peggy Shaw e Penny Arcade.
Partindo da autoexposição desabrida para ir além da pura
piada, transgride os padrões do
gênero e os transborda. Concede à temática sexual os trocadilhos habituais, mas o faz de um
ponto de vista feminino particular, quase lírico. O público
chega a estranhar, mas acaba se
entregando ao riso, cativado
pela autenticidade do que se
apresenta. Permitindo encenar
para além dos estreitos limites
formais da stand-up comedy,
com marcações de luz e de som,
Dip é quem melhor atualiza o
espírito deste formato.
De fato, a 1ª Mostra Paulista
de Stand-Up Comedy alterna
diferentes estilos de incitar risadas de modo rasteiro e despertar os piores instintos das
plateias. Mais honesto seria admitir que, a despeito do sucesso
de bilheteria, ela deforma públicos para o teatro.
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Na rede: A nova tela das artes Índice
|