São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2005

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TELEVISÃO

"Reality show" traz horas de cenas que mostram pessoas dormindo, como em um dos filmes radicais de Andy Warhol

"BBB" entra na vanguarda involuntária

BRUNO YUTAKA SAITO
DA REDAÇÃO

A arte contemporânea esbarra em uma nova encruzilhada. O choque é entre dois pesos pesados. De um lado, o homem das latas de sopa, Andy Warhol (1928-1987), mantém seu reinado no alto escalão da pop art.
No andar de baixo das manifestações artísticas, a televisão, está o diretor Boninho, que transforma o "Big Brother Brasil" em um dos maiores sucessos da TV nacional.
Uma observação mais atenta nos flashes diários do programa na TV paga ou no conteúdo do "pay-per-view" (pague para ver) -que mostram os acontecimentos na casa durante 24h por dia- revela similaridades, ainda que involuntárias, com os filmes experimentais dos anos 60 do artista plástico norte-americano.
Não raro, câmeras estáticas do "BBB" mostram apenas um bando de gente dormindo durante horas, ou então, uma cozinha vazia durante longos minutos. Em "Sleep" (1963), Warhol posiciona uma câmera à frente do poeta John Giorno, criando um filme de mais de cinco horas de duração com a mesma cena. Seria o "BBB" uma menosprezada pérola da arte de vanguarda? Ou, ainda, seria Boninho um gênio enrustido?
Os artistas e estudiosos consultados pela Folha divergem sobre semelhanças entre Warhol e "BBB". "São duas propostas totalmente opostas", diz o artista plástico Nelson Leirner, 73. Para ele, a arte, como os filmes do americano, pressupõe interação entre a obra e o público. "Um "reality" não traz isso; ele é apenas um programa de mau gosto, kitsch. Warhol tinha a intenção de dar ao público a sensação de um voyeur; "BBB" está mais próximo do circo."
Para o cineasta Cao Guimarães, 40, é justamente o voyeurismo o "momento de confluência"; a partir daí, vê diferenças. "Warhol se propunha ao antiespetáculo. "Sleep" tenta encapsular o passar do tempo. "BBB" é a espetacularização do cotidiano." Quem também vê breve semelhança é o professor do departamento de cinema da PUC Arlindo Machado, 55: "Ambos são registros em tempo real, mas o sentido é outro. No "BBB", há apenas o vazio". Já para o professor de comunicação da Universidade de Iowa (EUA) Mark Andrejevic, Warhol "estava à frente de seu tempo" e antecipava eventos de hoje. ""Reality show" é um entretenimento de baixa qualidade que celebra o mundano e transforma um Zé Ninguém em alguém; é a loteria da fama."
As similaridades puramente visuais não aproximariam as linguagens? "Não, os enquadramentos de câmera do "BBB" são horríveis. Isso sem falar que tem um monte de gente feia", afirma o cineasta Carlos Adriano, que diz ter assistido a todos os filmes experimentais de Warhol. Afirma ainda que não dormiu no meio das exibições. "Não havia em Andy o elemento exibicionista; o "BBB" escancara as vísceras dos participantes, todos estão em busca do dinheiro, e não da arte." "A diferença não reside no fato de ser ou não arte, mas no pressuposto crítico que existe em Warhol e é ausente no "BBB'", afirma a professora da PUC Giselle Beiguelman.
Assinantes do "pay-per-view" do "BBB", no entanto, não estão preocupados. O gerente financeiro Mércio Querido de Figueiredo, 33, que apenas ouviu falar em Warhol, pergunta: "Por que um filme com um cara dormindo é arte? Isso é uma apelação, uma idéia equivocada". Ele prefere o "BBB". "Tem menos pretensão, e é mais autêntico." Se ele consegue ver "insights" artísticos no programa? "Claro que não, aquilo é uma bobagem, por isso eu gosto tanto." ""BBB" é apenas fofoca, futilidade, não tem nada de artístico", completa o administrador de empresas Danilo Faria, 29, que nunca ouviu falar em Warhol.
Arte ou não, vanguarda ou pura coincidência, o fato é que embaixo do edredom do "Big Brother" há espaço para todos os tipos de manifestações.


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