São Paulo, sexta, 27 de março de 1998

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Capa do disco sintetiza transmutações da cantora

do enviado ao Rio

Não é todo dia que se pode começar assim: a capa de "Veneno Vivo" é linda. Parece fútil dizer, mas a foto azul desfocada, nitidamente inspirada na de "The Blue Mask" (82), de Lou Reed, é parte essencial do todo a ponto de conseguir se fazer tão importante quanto a música, quanto os músicos, quanto a cantora, quanto as canções.
Na foto, Cássia aparece transfigurada -evoca um demônio, um réptil, um menino, uma mulher, um abutre, uma carcaça. Tais substantivos podem por eles defini-la -tudo isso Eller significa no cenário MPB de fim de milênio.
Ela elabora mais um CD ao vivo -eles estão cada dia mais frequentes no pop nacional, fazem a música preguiçosa, repetitiva, oca, fugidia. Só tem seis discos, dois são ao vivo.
Cássia entope o ouvinte de discos ao vivo -aqui a coisa é ainda mais repetitiva, porque o ao vivo vem de um disco já redundante, dedicado à obra envelhecida do roqueiro oitentista Cazuza. Cássia, entretanto, não é fugidia, não é redundante, (ainda) não é preguiçosa.
É, antes de tudo, animal de palco -é ouvir "Nós", de Tião Carvalho (onde está esse homem?) e perceber. Cássia gravou a canção duas vezes -as duas ao vivo. São canções distintas, inéditas. A de agora é um desmaio, brisa que antecede a borrasca que se dará em "Mis Penas Lloraba Yo/Soy Gitano", do cancioneiro de Camarón de la Isla.
O registro é, de todo modo, incompleto. Cássia é mulher multimídia, em sentido que não passa por cibernética, por modismo.
Seu espetáculo -quem viu sabe- é acontecimento integral, muralha de cimento. Vazam ao disco apenas a voz, a fúria, a banda azeitada. Ficam subentendidos o espetáculo plástico de seu corpo, as feições caricaturais, as sutilezas, as atitudes -e o disco fica incompleto.
Tudo isso Waly Salomão soube captar -ele não é bobo, já fez uma Gal Costa, tem faro e não se gastou em excessos de mercado para que houvesse ficado exaurido.
Aqui, no entanto, ele sabe que tem ouro em pó nas mãos. Pode catalisar os demônios de Cássia, mas não criá-los. Eles existem, não precisam de Waly. Ele apenas pinta o cenário, num happening aqui, outro ali. É escravo dela, entretanto, e é isso que faz uma grande artista -e um grande orientador.
Com vocação a mítico, "Veneno Vivo" pode até ficar como o "Fatal" dos 90 -embora não mereça. Cássia ainda está por encontrar seus compositores -carrega por ora a tragédia (ou a sorte?) de que os seus, diferentemente dos de Gal, morreram precocemente; canta, por isso, "Geração Coca-Cola", incompatível com a feição adulta de mulher-demônio.
É ardil de manhosa. Nada há de mais feminino que o burro amarrado de Cássia -o mesmo que faz tantos correrem a milha de medo dela. Nenhuma outra antes conseguira seduzir um homem (Péricles Cavalcanti, também súdito baiano) a declarar: "Eu queria ser Cássia Eller". Quem não queria?
Em transição, ela ainda está por conceber o disco ao vivo (já que os adora) que se justifique por si. Isso é uma provocação, mas não parece difícil que ela consiga. Se não o fizer, já existe "Veneno Vivo", que é consolo de bom tamanho -e tem aquela capa linda. (PAS)
Disco: Veneno Vivo Artista: Cássia Eller Lançamento: PolyGram Quanto: R$ 18, em média


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