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Capa do disco sintetiza transmutações da cantora
do enviado ao Rio
Não é todo dia que se pode começar assim: a capa de "Veneno
Vivo" é linda. Parece fútil dizer,
mas a foto azul desfocada, nitidamente inspirada na de "The
Blue Mask" (82), de Lou Reed, é
parte essencial do todo a ponto
de conseguir se fazer tão importante quanto a música, quanto
os músicos, quanto a cantora,
quanto as canções.
Na foto, Cássia aparece transfigurada -evoca um demônio,
um réptil, um menino, uma mulher, um abutre, uma carcaça.
Tais substantivos podem por
eles defini-la -tudo isso Eller
significa no cenário MPB de fim
de milênio.
Ela elabora mais um CD ao vivo -eles estão cada dia mais frequentes no pop nacional, fazem
a música preguiçosa, repetitiva,
oca, fugidia. Só tem seis discos,
dois são ao vivo.
Cássia entope o ouvinte de discos ao vivo -aqui a coisa é ainda mais repetitiva, porque o ao
vivo vem de um disco já redundante, dedicado à obra envelhecida do roqueiro oitentista Cazuza. Cássia, entretanto, não é fugidia, não é redundante, (ainda)
não é preguiçosa.
É, antes de tudo, animal de palco -é ouvir "Nós", de Tião
Carvalho (onde está esse homem?) e perceber. Cássia gravou
a canção duas vezes -as duas ao
vivo. São canções distintas, inéditas. A de agora é um desmaio,
brisa que antecede a borrasca
que se dará em "Mis Penas Lloraba Yo/Soy Gitano", do cancioneiro de Camarón de la Isla.
O registro é, de todo modo, incompleto. Cássia é mulher multimídia, em sentido que não passa por cibernética, por modismo.
Seu espetáculo -quem viu sabe- é acontecimento integral,
muralha de cimento. Vazam ao
disco apenas a voz, a fúria, a
banda azeitada. Ficam subentendidos o espetáculo plástico de
seu corpo, as feições caricaturais, as sutilezas, as atitudes -e
o disco fica incompleto.
Tudo isso Waly Salomão soube
captar -ele não é bobo, já fez
uma Gal Costa, tem faro e não se
gastou em excessos de mercado
para que houvesse ficado exaurido.
Aqui, no entanto, ele sabe que
tem ouro em pó nas mãos. Pode
catalisar os demônios de Cássia,
mas não criá-los. Eles existem,
não precisam de Waly. Ele apenas pinta o cenário, num happening aqui, outro ali. É escravo
dela, entretanto, e é isso que faz
uma grande artista -e um grande orientador.
Com vocação a mítico, "Veneno Vivo" pode até ficar como o
"Fatal" dos 90 -embora não
mereça. Cássia ainda está por
encontrar seus compositores
-carrega por ora a tragédia (ou
a sorte?) de que os seus, diferentemente dos de Gal, morreram
precocemente; canta, por isso,
"Geração Coca-Cola", incompatível com a feição adulta de
mulher-demônio.
É ardil de manhosa. Nada há de
mais feminino que o burro
amarrado de Cássia -o mesmo
que faz tantos correrem a milha
de medo dela. Nenhuma outra
antes conseguira seduzir um homem (Péricles Cavalcanti, também súdito baiano) a declarar:
"Eu queria ser Cássia Eller".
Quem não queria?
Em transição, ela ainda está
por conceber o disco ao vivo (já
que os adora) que se justifique
por si. Isso é uma provocação,
mas não parece difícil que ela
consiga. Se não o fizer, já existe
"Veneno Vivo", que é consolo
de bom tamanho -e tem aquela
capa linda.
(PAS)
Disco: Veneno Vivo
Artista: Cássia Eller
Lançamento: PolyGram
Quanto: R$ 18, em média
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