São Paulo, sexta, 27 de março de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Antônio Abujamra libera o "veneno"

NELSON DE SÁ
enviado especial a Curitiba

Antônio Abujamra, 66, fala palavrões sem parar. Engraçado, abusado, ele tira risos da própria falta de elegância, como diz em entrevista.
Mas basta cortar os palavrões, como foi feito nos trechos publicados, para o diretor surgir mais para o tragicômico fatalista do que para o bufão.
E para "O Veneno do Teatro", monólogo confessional que ele estréia amanhã, às 24h, no festival de Curitiba, surgir mais como um louvor aos artistas do teatro do que uma coleção de "venenos" sobre os mesmos.
Quando deu entrevista, Abujamra nem tinha o espetáculo definido. Vai sentar-se diante do público e falar. Lembrar passagens e influências importantes em seu trabalho, como o poeta João Cabral de Melo Neto e a atriz Glauce Rocha.
Também amanhã, Abujamra faz a primeira das duas apresentações de "Auto da Compadecida", de Ariano Suassuna, que dirigiu e já apresentou no Rio.

Folha - Por que "veneno"?
Antônio Abujamra -
Eu uso a palavra "veneno", mas não sei se está certa. É uma droga que quando pega, quando entra em você, não adianta mais querer ser outra coisa. Você acha que eu vou fazer outra coisa na minha vida? Eu dirigi 90 peças até hoje. Uns 80 grandes fracassos. Os grandes fracassos no teatro brasileiro são do Abujamra.
Ninguém me conhecia, mas, quando eu faço Ravengar na televisão, o Brasil pára. O Brasil é assim. O Brasil é um lixo. E eu sou um cara que nasceu em Ourinhos, sem dinheiro.
O dinheiro que eu ganho, eu jogo em cavalos. A vida é causa perdida para mim, mesmo.
Folha - Do que você vai falar na peça?
Abujamra -
Eu vou contar as minhas coisas. Por exemplo, eu não aguento mais falar com estudante. Eu não aguento mais, estou velho. Envelheçam, como pediu o Nelson (Rodrigues). Não quero mais saber, não quero ver primeira peça de diretor, quero ver a sexta peça. Não é nariz empinado, não. É porque neste país... A minha geração de diretores é a única. Depois, não apareceu nenhuma, não há mais uma geração. A "soit disant" revolução acabou com a possibilidade de gerações.
É o que eu quero que essa garotada perceba. Tem que fazer geração. Nós, Antunes (Filho), o falecido Ademar (Guerra), Amir Haddad, Zé Celso, (Augusto) Boal, temos uma cumplicidade sem palavras. Ninguém vai falar mal do Antunes para mim, do Boal. Há uma cumplicidade. Os diretores jovens fazem uma peça e desaparecem. A culpa não é deles. É do Brasil. Eu vou ver a sexta peça, porque tem-se que fazer essa opção de ir até o fundo de ser diretor. Tem-se que ir até o fundo.
Folha - Em "O Veneno do Teatro" você está sozinho no palco?
Abujamra -
Sozinho não. Eu e o demônio, o demônio ao lado. Eu tinha pensado, para este espetáculo, eu, uma mesinha, um mapa para falar das viagens. E comecei a conversar com as pessoas. A minha sobrinha, Márcia, disse: "Tio, isso é Spalding Gray". Aí Chico Medeiros, "é Spalding Gray". "Mas quem é?" Aí eu consigo um vídeo, "Swimming to Cambodia", que eu achei fantástico. Só que ele tem a liberdade americana. A minha liberdade é brasileira. Ele tem elegância. Eu não quero ter elegância.
Folha - Você já tem um texto fechado ou vai improvisar?
Abujamra -
Eu tenho um roteiro. Da minha cabeça, como ela foi se formando. Os anos na Europa, até descobrir a minha cabeça. A viagem pelo norte da África, sem dinheiro, sem nada. Em Marselha, com fome, sem um tostão. Fiquei na casa do João Cabral de Melo Neto e todo mundo passava, Haroldo de Campos vinha de entrevistar o Ezra Pound. E eu lá, um garoto maravilhado.
O João me colocou uma postura que até hoje eu não deixo, que é a postura de ser concreto, não entrar nada do abstrato no trabalho artístico. O João foi um dos que fizeram a minha cabeça se organizar. Mas eu ainda era jovem, ainda pensava em sonho. Hoje eu já acho que sonho não deve passar de uma noite, acabou. A esperança acabou com a América Latina.
Folha - Quem mais?
Abujamra -
O (Roger) Planchon, que era o diretor brechtiano mais importante da época. Acompanhei a sua montagem de "As Almas Mortas", do Gogol, com tradução do Arthur Adamov, que ficou um grande amigo meu. Adorava ele. Ele se matou pondo a cabeça no forno. Depois de (Bertolt) Brecht e de Thomas Bernhard, é o maior autor do século. É fantástico. O Brasil ainda não viu nada do Adamov. É uma Bósnia cultural. Eu estou criando o "Veneno do Teatro" agora. Não posso esquecer de falar do Adamov.
Folha - Você não vai falar da sua carreira no teatro?
Abujamra -
Eu me lembro. Quando comecei a carreira, eu dirigi "Raízes", com a Cacilda (Becker). Eu tinha falado mal de um crítico e aí a crítica toda veio de pau em cima de mim, o Décio (de Almeida Prado), o Sábato (Magaldi). Me arrebentaram, e o espetáculo era ótimo. Uma frase que eu digo sempre e vou falar no "Veneno" é assim: "Sou um aluno de teatro, não tenho nada a ver com a crítica". E uma do Bernard Shaw: "Quem sabe faz, quem não sabe ensina. Quem não sabe ensinar, vira crítico".
Folha - E os seus fracassos?
Abujamra -
"José, do Parto à Sepultura", do Boal. Fracasso absoluto. O Zé Celso me convidou para dirigir, eu todo brechtiano quando eles estavam stanislavskianos. Só o Jô Soares gostou. Mas o Zé, com a classe dele, falou numa revista cubana, anos depois, que o Oswald de Andrade dele foi um produto de eu ter estado no Oficina. Isso foi lindo. Eu também fiz uma adaptação de "Fuenteovejuna", do Lope de Vega. Muita gente, um palco giratório. Fracassou feio.
Aí fiz "Terror e Miséria do Terceiro Reich", do Brecht, que tinha o dobro de gente no palco. E Glauce (Rocha).
Folha - Ela foi a sua grande atriz.
Abujamra -
Ela fez "Electra" comigo em 65 e a polícia foi em cima. Foi lá para prender o autor. Sófocles. Saiu até no "New York Times". Falando do veneno do teatro, a Glauce não conseguia ter filho. Ficava grávida e perdia, ficava grávida e perdia. Estava de seis meses, veio para mim e falou: "Eu quero trabalhar". "Não, eu não vou ser o culpado de você perder o bebê." "Eu quero, eu quero." Então fizemos "A Judia". Que coisa maravilhosa. Os críticos da época faziam fila para ver a Glauce nos ensaios.
Um dia eu estou no Jóquei Clube e me acham para dizer que ela tinha perdido o bebê e estava num hospital na Penha. Fui eu lá. Eu abri a porta, acho que ela viu alguma coisa na minha cara, eu era muito jovem. Ela falou: "Calma, Abujamra, calma. Agora é só apertar o vestido um pouco aqui e eu continuo a peça". Eu caí desmaiado. É o veneno do teatro.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.