São Paulo, sexta, 27 de março de 1998

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"O Lutador" torna-se um "Rough Guide" de Belfast

PAULO VIEIRA
especial para a Folha

Menos que um filme sobre as venturas e desventuras de um boxeador -e metáfora da condição humana, como em "Touro Indomável", de Scorsese, por exemplo-, "O Lutador", novo filme da dupla Jim Sheridan e Daniel Day-Lewis ("Em Nome do Pai", "Meu Pé Esquerdo"), é, outra vez, um vôo sobre o IRA.
Sheridan lança mão de uma figura mítica, a do boxeador, cujo retorno da prisão irá colocar em ação a maquinaria de um engenhoso argumento, uma espécie de "Rough Guide" de Belfast.
Assim como no programa televisivo de turismo social do canal de TV paga GNT, o que está em jogo é mostrar uma espécie de "Como Sobreviver" em Belfast.
Dividida até hoje em dois setores -o católico e o protestante-, com acessos proibidos aos grupos rivais e permanentes escaramuças e mortes, a capital da Irlanda do Norte não é o lugar mais seguro no mundo para se viver.
A volta de Danny Flynn (Lewis), seu reencontro com o antigo treinador, o agora alcoólatra Ike, e o sonho cumprido de reabrirem o velho ginásio "ecumênico" - que havia ido à lona com o êxodo de seus alunos protestantes- contraria as pretensões de um dirigente local do IRA.
Além do perigo ecumênico -Harry (Gerard McSorley) acredita na força, não no diálogo, como forma do IRA atingir seus objetivos-, Flynn retomará seu antigo namoro com Maggie (Emily Watson), ferindo o que parece ser um dos mais ferrenhos códigos de ética da organização.
Maggie é casada e tem um filho com um militante preso (apresentado como "melhor amigo de Flynn").
Nem os protestantes parecem ser mais odiosos para um católico do que aquele que flerta -eu não disse prevarica- com uma "viúva" do Exército Republicano Irlandês.
Visão coletiva
Flynn acha honestamente que seu lugar é entre os católicos de Belfast, mas hesitará, tentará umas brigas em Londres -ele abandona dramaticamente uma no meio, "lembrando" que sua luta não é aquela- e arrisca passear com Maggie no lado protestante de Belfast.
Mas o destino do herói trágico é retornar, ainda que para o seu próprio fim, o que parece próximo de acontecer.
Dito dessa maneira, sugere-se um Lewis novamente às voltas com um personagem supra-humano, como o Gerry de "Em Nome do Pai".
Mas, diferentemente desse, Flynn é apenas mais um numa cidade impossível. Tal visão coletiva, oculta num personagem forte como soem ser os boxeadores no cinema, é o grande trunfo de "O Lutador". Não deve ser à toa o sobrevôo sobre Belfast pouco antes dos créditos.



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