São Paulo, quinta-feira, 27 de abril de 2006

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NINA HORTA

Os escritores e uma linda galega

Bem , alguém que escreve sobre comida precisa ler sobre comida, comer em restaurante, cozinhar, provar, assistir a programas de TV do mundo todo, pesquisar na internet, debruçar-se sobre guias.
Uma crônica por semana não permite devaneios, exige trabalho contínuo e preocupação, e você, ali refestelada no sofá, lendo uma antologia crítica de poemas da Camille Paglia? Tem cabimento? Uma mulher que com certeza nem um ovo sabe fritar...
Aí, vai se introduzindo a deformação profissional, e a cozinheira de plantão começa a peneirar o que poderia servir aos leitores. Até que o título do livro da Paglia daria inspiração para o nome de outro livro, desta vez de comida. "Break, blow, burn!" É um verso de John Donne, bravo, bravíssimo, brigando com Deus, acaba comigo, me quebra, me arrebenta, me assopra, me queima, me renova, me faz outro, me arranca do fogo, me transforma.
Nas devidas proporções, quebrar, assoprar, queimar e transformar é o que fazemos aos ingredientes mais rebeldes até chegar ao prato feito. Link estabelecido, continuamos a leitura com menos problemas.
De vez em quando, o esforço é grande para achar a comida de cada dia num livro qualquer, não é como ler Proust ou Nava, fontes preciosas.
Estou sempre às voltas com Virginia Woolf, já falei muito nela, vou voltar a falar, mas agora inventaram que era anoréxica, nem tanto ao mar nem tanto à terra. Desajeitada era. Quando se casou, foi fazer um curso de cozinha e assou o anel no bolo. Mas até que gostava de uma comidinha boa, não fosse ter passado por duas guerras, cupons de racionamento, falta de víveres, empregadas rebeldes.
E, nos livros, há sempre um jantar antológico, ou um boeuf em daube... "Um triunfo", disse Bankes, baixando a faca por um instante. Havia comido atentamente. Um prato forte, mas tenro, feito na perfeição...
"É uma receita francesa da minha avó", explicou a senhora Ramsay. Claro que era francesa. O que passava por comida na Inglaterra era abominável. (Todos concordaram.) Repolho cozido n'água. Rosbife duro como sola de sapato. E o desperdício das deliciosas cascas dos legumes...
Leopold Bloom desconfiava de alho, e alguns livros de receita da época pedem que, para dar sabor, se esfregue um alho na saladeira. Na mesma época, as cozinheiras ajuizadas, em vez de ler Joyce, liam Elizabeth David (prosa maravilhosa, acreditem) e ganhavam o seguinte conselho: "O puritanismo grotesco e a falta de respeito com a qual o alho é tratado neste país levam à superstição de que esfregar a vasilha da salada é o bastante. É claro que isto depende do que se vai comer: as folhas ou a vasilha".
E, por falar nestas coisas que dão sabor às comidas mediterrâneas, os alhos, as cebolas, os pimentões, tenho aqui no bolso um endereço imperdível, nada literário. Uma galega linda que faz comida boa e é especialista no que há de mais gostoso, que é um fideuà (um tipo de paella feita de macarrãozinho fino e lotada de frutos do mar). Do lado, um aiolli que dá o tchan, levanta o prato às alturas. Gosto de ver a menina cozinhando em frente aos convidados (para menos de 40 pessoas não vale muito a pena). A graça está nisso, o cheiro, a transformação e o clímax coroado pela fome, com aqueles camarãozões por cima, com casca e tudo. Prato único, demora umas duas horas e vira o leitmotiv da festa. E os telefones da Sandra Picos são 0/xx/11/ 3032-0666 e 0/xx/11/7415-5059.


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