São Paulo, sábado, 27 de maio de 2006

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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Pedros no caminho

Na escrita exata de Rubens Figueiredo, preserva-se uma distância analítica, registro da perplexidade comum

NA OBRA de João Antônio, um apelido recorrente prestou-se a sublinhar o que de comum se escondia sob uma multidão de personagens, brasileiros e contemporâneos, das mais variadas extrações. Atravessando vários de seus livros, a alcunha "Jacarandá" batizou do jovem e próspero publicitário ao apurado e alquebrado guardador de carros, morador de rua. A alegoria tinha endereço certo: recobrir, com boa dose de ironia, mas igual de identificação afetiva, uma diversidade de tipos enredados nas malhas da malandragem local, esvaindo-se como alcançam pelas frestas da (des)ordem. Na madeira nobre e nativa, a combinação esdrúxula, nossa e reconhecível, entre resistência legítima e cara-de-pau fraudulenta encontrava matéria adequada. É de outra ordem o "visto de perto, somos todos Pedros" que anima e dá ar de família aos protagonistas da recente coletânea "Contos de Pedro", de Rubens Figueiredo. Ainda que o leque humano seja igualmente amplo (um porteiro noturno, um músico reconhecido, um garimpeiro, um menino de escola ou um escritor, por exemplo), o narrador abstém-se do tom irônico que, em João Antônio, equivalia a uma tese e uma tomada de partido. Na escrita precisa de Figueiredo, afinada na difícil tarefa da tradução, preserva-se uma distância analítica, registro da perplexidade comum e epifanias ocasionais a que chegam sujeitos tão desiguais nos momentos decisivos de suas vidas. Assim, se não desejamos cair na tentação de identificar a unidade do livro na frouxidão do "humano, demasiadamente humano", somos levados a concluir que a forte impressão de arquitetura séria deriva da postura "laboratorista" e negativa do narrador, reticente e econômico em juízos mesmo quando mergulhado da intimidade das personagens. Como em "Barco a Seco" (2001), Figueiredo é sensível à capacidade das palavras bem arranjadas de produzir mitos: lá, um perito em arte, especialista em pintor precocemente desaparecido, resiste o quanto pode a despregar as velas da fantasia e preencher as lacunas de sua biografia obscura. O denominador comum dos destinos representados vacila entre sua indecifrabilidade e sua irracionalidade, princípios que orientam estas vidas simples, consumidos pelo trabalho e pela violência. Calam fundo o zelador de "O Dente de Ouro", migrante solitário que só escapa do hábito da submissão incondicional para a janela vazia do misticismo, ou o protagonista de "O Nome que Falta", faxineiro de churrascaria que, entre balas perdidas e pilhas de detrito, finalmente se reconhece na matéria impura do lixo que carrega. Há ainda os viúvos de si mesmos, como o escritor que se vendeu e busca uma miragem de autenticidade na amiga do passado. Inconcessivo e sem levantar bandeiras, Figueiredo sabe a que veio.


CONTOS DE PEDRO      Autor: Rubens Figueiredo
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 36 (208 págs)



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