São Paulo, quinta-feira, 27 de maio de 2010

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NINA HORTA

Dias de salada da Cleópatra


O que os egípcios poderiam ter em suas mesas? Patê de foie gras, línguas de flamingos, escargots...

SEMPRE CAI na minha mão alguma receita de beleza de Cleópatra. Tomava banho em leite de jumenta, untava-se com manteiga, maquinando estratégias para que reis se apaixonassem por ela à primeira vista. Não muito bonita, isto é, sem traços clássicos, era culta, inteligente, engraçada e teatral.
Uma frase da peça "Antônio e Cleópatra" me intriga. Cleópatra está pensando no seu apogeu quando mocinha. Acha que já não é tão bela quanto nos seus dias de salada, "my salad days"... Dias de salada? Fria, verde, imatura, com a pujança de uma rúcula nova, uma mostarda picante, uma alface frágil, fresca. "Nos meus dias de salada." Como fomos perder essa expressão?
Quando Antônio chegou à Alexandria, Cleópatra, para seduzi-lo, fez uma recepção magnífica e, daí em diante, criou um mundo de fantasia à volta dele. Um médico que morava lá teve acesso às cozinhas e contou tudo, tim tim por tim tim, ao avô de Plutarco, que, por sua vez, nos deixou a história escrita como bom fofoqueiro que era.
Assavam-se oito javalis em grandes espetos, e ele imaginou muitos convidados. O cozinheiro riu, eram só 12, mas cada prato tinha seu momento certo de ser servido.
Explicou que Antônio poderia pedir a comida para o começo da festa e distrair-se com outro assunto, como tomar uma garrafa de vinho que lhe haviam dado. (O vinho já se tornara especial para os egípcios.) Era necessário ter muitos pratos em várias fases de cozimento para que chegassem perfeitos à mesa.
Entenderam? Queria a comida para as 20h. Aparecia um assunto novo, e ele adiava o jantar. Distraia-se e gastava uma hora. Às nove, o javali era outro.
E se, por acaso, resolvesse sair um pouco com Cleópatra, disfarçados, e passear pela cidade olhando pelas janelas, entrando em brigas, em brincadeiras? Comia-se o javali das 23h. Uma mordomia inacreditável, mas que para cozinheiros faz todo sentido.
Fui procurar qual seria a comilança da época. Achei num livro de Diana Preston, "Cleopatra and Antony" (que não estou recomendando, não é sobre comida), o que os egípcios poderiam ter em suas mesas. Patê de foie gras, com certeza. Foram eles que descobriram a iguaria.
Línguas de flamingos do Nilo. (Ah, matar um flamingo para comer a língua? Que desfalque naquelas margens juncadas do rio!) Escargots, que os egípcios criaram, e "dormouse" (aquele de "Alice no País das Maravilhas"), arganaz, um tipo de roedor que guardavam no escuro, em potes, alimentados com nozes, figos e castanhas. Quando ficavam gordinhos, eram assados, lambuzados em mel e polvilhados com papoula. (Huum, esse rato não me parece mau.)
Avestruzes, meio duras, mas cuja parte preferida eram os miolos, assim como os dos pavões e papagaios. A ideia de sofisticação maior seriam esculturas de pequenas partes de animais raros formando um animal diferente. Úberes de vacas, tromba de elefante, pés de porco (os preferidos de Cleópatra), massas doces árabes, pássaros, galinhas da Índia, vitelos em salmoura e açúcar.
Sem críticas aos egípcios. Assim caminha a humanidade e suas modas culinárias. Nada muito diferente do que um pé de galinha desossado, feito em torresmo, servido sobre uma espuma de algas ou um coelho líquido para tomar de canudinho.
Afinal, ainda eram os dias de salada de Cleópatra, quando ela própria se sentia um bom-bocado digno dos deuses.

ninahorta@uol.com.br


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