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LIVRO/LANÇAMENTO
"FOCO INICIAL"
Em obra de 98, Patricia Cornwell encara loucura como eco coletivo
Autora enxerga maldade e violência próprias ao homem
JORGE COLI
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Ninguém está seguro no
mundo de hoje." O mundo de hoje está podre. A citação
vem do livro "Foco Inicial". A podridão emana de cada página.
Patricia Cornwell, norte-americana, criou, no início dos anos de
1990, o personagem da Dra. Scarpetta, chefe do Departamento de
Medicina Legal no Estado de Virgínia. Scarpetta ressurge em livros
que se sucedem para formar o fio
condutor de uma saga. "Foco Inicial" é publicado com atraso no
Brasil, pois foi escrito em 1998.
Desde essa época, a Dra. Scarpetta
viveu outras aventuras.
Ela se impôs imediatamente,
com uma convicção verdadeira,
como possuem os maiores detetives das histórias de mistério: Miss
Marple, Hercule Poirot ou Sherlock Holmes. Mas difere dos heróis criados por Agatha Christie
ou Conan Doyle em vários pontos, e sobretudo neste: não se conserva idêntica a si mesma de um
romance a outro. É permeável ao
tempo, ao envelhecimento. É abalada por ataques violentos de criminosos, que atingem duramente
sua vida sentimental. Mais os romances se sucedem, mais Kay
Scarpetta vai se tornando amarga
e melancólica.
Isto não ocorre apenas com ela.
O capitão de polícia Marino,
Lucy, a sobrinha brilhante, que
constituem suas relações afetivas
mais longas e estáveis, são também atingidos, cada vez mais, pela maldade intrínseca ao mundo.
Essa maldade parece não conhecer limites. Aqui se encontra um
outro ponto de divergência entre
Scarpetta e seus célebres colegas,
detetives inventados pela literatura. O positivismo de Holmes descobre crimes que tentam disfarçar
seus rastros materiais. O racionalismo de Poirot retraça o caminho
mental dos motivos e procedimentos assassinos. Nestes casos,
ou o crime se insere na ordem do
mundo, ou nos traços constantes
da natureza humana, como uma
alteração disfarçada de uma coisa
e de outra.
O pessimismo de Patricia Cornwell, ao contrário, ao inventar delitos patológicos, mostra o mundo, os homens, a sociedade funcionando de maneira desequilibrada e tornando-se cúmplice dos
criminosos. A loucura de indivíduos encontra eco na loucura coletiva. Uma ameaça invisível dissemina-se em cada coisa, em todas as coisas.
"Foco Inicial" traz à cena Carrie
Gretchen, um ser diabólico e demente, antiga namorada de Lucy,
que sabe se infiltrar com maestria
nos pontos mais frágeis das pessoas e das instituições. Desta maneira, por exemplo, ela consegue
manipular habilmente a imprensa, explorando a tendência do jornalismo em ceder facilmente ao
espalhafatoso, ao chocante, ao
sensacionalismo, à distorção dos
fatos e das razões.
Um outro ponto que singulariza
o universo de Scarpetta é que ele
não tem a nitidez material do de
Holmes nem a elegância impecável do de Poirot. Scarpetta examina cadáveres e as mais terríveis
mutilações do corpo. Em "Foco
Inicial", incêndios se encarregam
de deformar peles e carnes da pior
maneira; mais ainda, a perversão
dos criminosos, com crueldade
maior que a do fogo, martiriza as
vítimas.
Patricia Cornwell tem o segredo
de recriar ambientes pelos detalhes. O trabalho de Scarpetta é
descrito com minúcia, e sua natureza orgânica traz, ao livro, a percepção de uma concretude física:
"Pus a máscara e a luva, baixei a
temperatura do fogão para não
danificar os ossos e despejei duas
colheres de sabão em pó e uma de
alvejante para facilitar a soltura
das membranas fibrosas, cartilagens e gordura. (...) Coloquei com
cuidado as tíbias e os fêmures na
panela, depois a pelve e partes do
crânio. As vértebras e costelas entraram a seguir. A água esquentou
novamente e o cheiro forte se espalhou com o vapor. Eu precisava
examinar os ossos limpos, pois
eles poderiam ocultar alguma informação, e infelizmente não havia outra maneira de fazer isso".
Esse caldeirão de Medéia mostra como Patricia Cornwell reduz
o humano ao físico, porque nesse
domínio inscreve-se de modo
mais visível tudo o que é vulnerável. Ela possui o dom, ainda, das
sugestões implícitas: assim, no
exemplo acima, a necessidade
técnica, para a patologista, de cozer partes de um cadáver, evoca
os procedimentos prescritos por
alguma receita de cozinha e, sem
dizer, embute uma ressonância de
canibalismo.
Por sinal, Scarpetta tem prazer,
nos primeiros romances, em criar
refeições suculentas. Pouco a
pouco, esse prazer desaparece;
em "Foco Inicial", ela se torna,
simbolicamente, uma cozinheira
de defuntos.
Patricia Cornwell enxerga um
fundo elementar de maldade e de
violência, próprio ao homem, que
os progressos não são capazes de
domar. Os crimes nascem disso,
de ressurgências primárias que irrompem, vulcânicas, na superfície da civilização: "Sempre que
acreditava ser impossível aos seres humanos fazer algo pior, eu
errava. Ou talvez fosse apenas
mais chocante o mal primitivo
numa sociedade de seres humanos altamente evoluídos que viajavam a Marte e se comunicavam
pela internet". É sobre esse poço
sem fundo que "Foco Inicial" se
debruça, com um poderoso sentido da narração dos personagens e
dos ambientes.
Jorge Coli é historiador da arte
Foco Inicial
Point of Origin
Autora: Patricia Cornwell
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 35 (384 págs.)
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