São Paulo, sábado, 27 de julho de 2002

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LIVRO/LANÇAMENTO

"FOCO INICIAL"

Em obra de 98, Patricia Cornwell encara loucura como eco coletivo

Autora enxerga maldade e violência próprias ao homem

JORGE COLI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Ninguém está seguro no mundo de hoje." O mundo de hoje está podre. A citação vem do livro "Foco Inicial". A podridão emana de cada página.
Patricia Cornwell, norte-americana, criou, no início dos anos de 1990, o personagem da Dra. Scarpetta, chefe do Departamento de Medicina Legal no Estado de Virgínia. Scarpetta ressurge em livros que se sucedem para formar o fio condutor de uma saga. "Foco Inicial" é publicado com atraso no Brasil, pois foi escrito em 1998. Desde essa época, a Dra. Scarpetta viveu outras aventuras.
Ela se impôs imediatamente, com uma convicção verdadeira, como possuem os maiores detetives das histórias de mistério: Miss Marple, Hercule Poirot ou Sherlock Holmes. Mas difere dos heróis criados por Agatha Christie ou Conan Doyle em vários pontos, e sobretudo neste: não se conserva idêntica a si mesma de um romance a outro. É permeável ao tempo, ao envelhecimento. É abalada por ataques violentos de criminosos, que atingem duramente sua vida sentimental. Mais os romances se sucedem, mais Kay Scarpetta vai se tornando amarga e melancólica.
Isto não ocorre apenas com ela. O capitão de polícia Marino, Lucy, a sobrinha brilhante, que constituem suas relações afetivas mais longas e estáveis, são também atingidos, cada vez mais, pela maldade intrínseca ao mundo. Essa maldade parece não conhecer limites. Aqui se encontra um outro ponto de divergência entre Scarpetta e seus célebres colegas, detetives inventados pela literatura. O positivismo de Holmes descobre crimes que tentam disfarçar seus rastros materiais. O racionalismo de Poirot retraça o caminho mental dos motivos e procedimentos assassinos. Nestes casos, ou o crime se insere na ordem do mundo, ou nos traços constantes da natureza humana, como uma alteração disfarçada de uma coisa e de outra.
O pessimismo de Patricia Cornwell, ao contrário, ao inventar delitos patológicos, mostra o mundo, os homens, a sociedade funcionando de maneira desequilibrada e tornando-se cúmplice dos criminosos. A loucura de indivíduos encontra eco na loucura coletiva. Uma ameaça invisível dissemina-se em cada coisa, em todas as coisas.
"Foco Inicial" traz à cena Carrie Gretchen, um ser diabólico e demente, antiga namorada de Lucy, que sabe se infiltrar com maestria nos pontos mais frágeis das pessoas e das instituições. Desta maneira, por exemplo, ela consegue manipular habilmente a imprensa, explorando a tendência do jornalismo em ceder facilmente ao espalhafatoso, ao chocante, ao sensacionalismo, à distorção dos fatos e das razões.
Um outro ponto que singulariza o universo de Scarpetta é que ele não tem a nitidez material do de Holmes nem a elegância impecável do de Poirot. Scarpetta examina cadáveres e as mais terríveis mutilações do corpo. Em "Foco Inicial", incêndios se encarregam de deformar peles e carnes da pior maneira; mais ainda, a perversão dos criminosos, com crueldade maior que a do fogo, martiriza as vítimas.
Patricia Cornwell tem o segredo de recriar ambientes pelos detalhes. O trabalho de Scarpetta é descrito com minúcia, e sua natureza orgânica traz, ao livro, a percepção de uma concretude física: "Pus a máscara e a luva, baixei a temperatura do fogão para não danificar os ossos e despejei duas colheres de sabão em pó e uma de alvejante para facilitar a soltura das membranas fibrosas, cartilagens e gordura. (...) Coloquei com cuidado as tíbias e os fêmures na panela, depois a pelve e partes do crânio. As vértebras e costelas entraram a seguir. A água esquentou novamente e o cheiro forte se espalhou com o vapor. Eu precisava examinar os ossos limpos, pois eles poderiam ocultar alguma informação, e infelizmente não havia outra maneira de fazer isso".
Esse caldeirão de Medéia mostra como Patricia Cornwell reduz o humano ao físico, porque nesse domínio inscreve-se de modo mais visível tudo o que é vulnerável. Ela possui o dom, ainda, das sugestões implícitas: assim, no exemplo acima, a necessidade técnica, para a patologista, de cozer partes de um cadáver, evoca os procedimentos prescritos por alguma receita de cozinha e, sem dizer, embute uma ressonância de canibalismo.
Por sinal, Scarpetta tem prazer, nos primeiros romances, em criar refeições suculentas. Pouco a pouco, esse prazer desaparece; em "Foco Inicial", ela se torna, simbolicamente, uma cozinheira de defuntos.
Patricia Cornwell enxerga um fundo elementar de maldade e de violência, próprio ao homem, que os progressos não são capazes de domar. Os crimes nascem disso, de ressurgências primárias que irrompem, vulcânicas, na superfície da civilização: "Sempre que acreditava ser impossível aos seres humanos fazer algo pior, eu errava. Ou talvez fosse apenas mais chocante o mal primitivo numa sociedade de seres humanos altamente evoluídos que viajavam a Marte e se comunicavam pela internet". É sobre esse poço sem fundo que "Foco Inicial" se debruça, com um poderoso sentido da narração dos personagens e dos ambientes.

Jorge Coli é historiador da arte



Foco Inicial
Point of Origin
    
Autora: Patricia Cornwell
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 35 (384 págs.)




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