São Paulo, sexta-feira, 27 de agosto de 2004

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MÚSICA

Em "Medúlla", islandesa e convidados exploram diferentes timbres vocais; disco foi gravado em 12 partes do mundo

Björk sai em busca da essência da canção

JAMES MCNAIR
DO "INDEPENDENT"

"Alguém quer papagaio-do-mar assado? Ou alca?" Não se trata de um esquete do Monty Python -é Stuart, o empresário de Björk, passeando com os olhos pelo cardápio de um restaurante tradicional de Reykjavík onde tenho encontro marcado com sua cliente. Minutos mais tarde, Björk e eu já estamos batendo papo numa sala dos fundos do restaurante.
Björk é amigável, mas um pouco tímida. Ela diz que precisa tomar café para começar a falar em inglês. De maneira charmosa, pede desculpas toda vez que seu dinamismo cafeinado é tanto que eu não consigo abrir a boca em meio a sua enxurrada de palavras.
Começamos por discutir uma aparente disparidade: entre Björk, a artista séria, e Björk da maneira em que foi caricaturizada no "Spitting Image". Essa tendência da mídia de retratá-la como duende excêntrico a irrita?
"Às vezes me pergunto o que diriam se eu tivesse nascido em Leeds", diz Björk, "mas minha relação com a Inglaterra também é bacana. Quando eu estava me desenvolvendo como vocalista, as crianças aqui em Reykjavík jogavam pedras em mim porque me achavam estranha, mas revistas de música inglesas como a "NME" descobriram o Sugarcubes e passaram a me dar algum crédito. Por isso nunca me ofendi quando me chamavam de duende.
"De qualquer maneira", ela acrescenta, sorrindo, "a Inglaterra tem druidas e foi um inglês que escreveu "O Senhor dos Anéis". Afinal, quantos goblins e elfos se podem incluir em uma história? E a Inglaterra é o melhor lugar do mundo em matéria de excêntricos. Todas essas pessoas fantásticas tipo Richard James (Aphex Twin) e David Bowie não poderiam ter saído de outro lugar".
A cantora de 37 anos e eu nos reunimos para falar de seu novo álbum, "Medúlla". Possivelmente o trabalho mais ambicioso de uma carreira solo repleta de discos pioneiros, o álbum se baseia na miríade de timbres e texturas da voz humana. Houve um momento de epifania na direção do disco. Imagine a cena: Björk, grávida de oito meses de Isadora, que já está com quase 2 anos, está gravando suas próprias participações na bateria. Pense em Meg White de barriga grande. De repente ela se dá conta de que o que está fazendo é supérfluo.
Iniciando um processo de arqueologia auditiva, ela primeiro remove algumas faixas de ritmo, depois vai escavando camadas sucessivas de instrumentação, até que suas melodias vocais soterradas voltam a brilhar. Nesse momento, ela teve a idéia de criar um álbum cantado quase inteiramente sem acompanhamento. "A única outra regra é que não soasse como Manhattan Transfer ou Bobby McFerrin."
Como "Vespertine" (2001), sua visão belíssima da introspecção e da intimidade doméstica, o título de "Medúlla" combina com o conteúdo do álbum. "O título significa medula em linguagem médica, em latim. Não apenas a medula óssea, mas a medula dos rins, a medula dos cabelos. Quer dizer obter a essência de alguma coisa, e, pelo fato de esse álbum ser todo vocal, o título faz sentido."
"Alguma coisa dentro de mim queria deixar a civilização de fora", ela prossegue, "queria voltar para antes de tudo acontecer e indagar "Onde está a alma humana? E se nos desfizéssemos da civilização, da religião, do patriotismo, das coisas que deram errado?". Ia chamar o álbum de "Ink" (Tinta), porque eu queria que fosse como o sangue negro, de 5.000 anos atrás, que existe dentro de todos -um espírito antigo cheio de paixão e que ainda sobrevive."
Um álbum inteiramente à capella soa como algo que pode cansar, mas o ecletismo de "Medulla" e sua lista de convidados ajudam a garantir uma experiência auditiva fascinante, muitas vezes emocionante. Produzido por Björk e gravado em 12 lugares, incluindo Nova York, Islândia, Veneza e as ilhas Canárias, o álbum inclui contribuições da cantora inuit (esquimó) Tanya Tagaq Gillis, o japonês Dokaka, ás do "beatbox", do estimado Robert Wyatt, Rahzel, do The Roots, e de Mike Patton, ex-Faith No More.
"Quis que todos nós fizéssemos todo tipo de sons especiais que conseguíssemos", diz Björk, cujo próprio sotaque híbrido, por si só, já é um espanto em termos de timbre. "Às vezes há uma espécie de fusão em que ninguém se sobressai aos outros; em outros momentos, eu queria que cada cantor tivesse uma espécie de solo."
Portanto, ouvinte, preste atenção aos sons angelicais e demoníacos, aos sons eróticos, exóticos e cômicos, às versões humanas de insetos e aves, a assobios, momentos de felicidade solta e outros de graça sublime. Também há uma mistura de eras que é típica de Björk: assim como "Vespertine" tinha caixas de música feitas à mão lado a lado com a instrumentação eletrônica de vanguarda do duo Matmos, de San Francisco, "Medúlla" tem arranjos corais tradicionais com programação inovadora, esta última cortesia de Valgeir Sigurdsson, do grupo islandês Múm, e de Mark Bell, do projeto eletrônico LFO.
Em uma das melhores faixas do álbum, "Vökuró", Björk e um coral de 20 vozes reinventam uma composição de som atemporal composta ao piano pela compositora islandesa septuagenária Jórunn Vidar. Existe uma história fascinante por trás da música. Björk explica: "Jórunn Vidar é uma senhora idosa, uma grande figura. Quando ela estudou composição, em Berlim, antes da Segunda Guerra Mundial, conheceu Hitler e Leni Riefenstahl, mas não vou falar de tudo isso agora. Quando lhe telefonei para lhe perguntar sobre usar sua música, ela disse: "Deve ser maravilhoso ter uma menininha. Ela deve ser uma grande inspiração para você"."
"Fiquei um pouco confusa num primeiro momento -é que eu não tinha me dado conta de que a canção é uma canção de ninar que foi escrita para uma garotinha de olhos azuis. É tão estranho, porque venho trabalhando com essa música há quatro anos, e há quatro anos eu não fazia a menor idéia de que eu mesma acabaria tendo uma filhinha de olhos azuis. Coisas como essas aconteceram várias vezes nesse álbum, momentos em que tudo se encaixa. Estou aprendendo a confiar em meus instintos."
A carreira solo de Björk na vida adulta vem demonstrando o grande raio de ação de seu trabalho. Ela reconheceu o valor, procurou e, em alguns casos, namorou com pessoas que inovam e mexem com o mundo da música, como Tricky, Goldie, Nellee Hooper e Graham Massey (808 State). Ela já criou videoclipes fascinantes, idiossincráticos e expostos como "Human Behaviour" e "Cocoon", este último dirigido por Eiko Ishioka, grande nome do design japonês, e incluindo um pelotão de Björks nuas.
Quem senão Björk usaria um vestido de cisne, completo com bico e ovo? E que outro músico ou música é suficientemente versátil e autoconfiante para deslocar-se entre o jazz de big band (sua versão de "It's Oh So Quiet", sucesso de 1948 de Betty Hutton) e paisagens sonoras eletrônicas inspiradas pela geografia física da Islândia (como "Joga", a faixa mágica que se destaca em seu aclamado álbum "Homogenic", de 1997)?
Mas já houve momentos em que sua personalidade bombástica lhe custou caro -e não apenas em termos de ser caricaturizada como duende. Em 1996 Ricardo Lopez enviou por correio uma bomba de ácido à firma britânica que empresaria Björk e, em seguida, filmou seu próprio suicídio em vídeo. Naquele mesmo ano, Björk tinha atacado uma repórter de TV que invadiu a privacidade de seu filho Sindri. Quando a cantora saltou em cima da repórter Julie Kaufman no aeroporto Don Muang, em Bangcoc, as imagens filmadas do incidente foram exibidas em todo o país. Mas muitos astros e estrelas fartos dos paparazzi aplaudiram sua iniciativa.
Desde então, e muito compreensivelmente, Björk vem se tornando cada vez mais avessa à imprensa. De maneira geral, seus filhos e suas casas em Nova York, Londres e Reykjavík são assuntos que ela não aceita comentar. E nem sequer pense em perguntar a ela sobre Matthew Barney, o iconoclasta artista e cineasta de San Francisco que é seu namorado há quatro anos. Isto dito, a última gravidez de Björk, de Isadora, teve efeito tão profundo sobre a gestação de "Medúlla" que há momentos em que ela não consegue deixar de aludir à sua filhinha.
"Quando você está amamentando", explica, "a sensação de estar nutrindo seu filho é o maior barato natural que se pode sentir. Então, com "Mouth's Cradle", eu imaginava um tipo de musical em que houvesse uma boca enorme, os dentes seriam como uma escada, e você faria uma dança tipo Fred Astaire, usando os dentes como escadas para chegar até a boca. Mas a música também é sobre olhar para um bebê e pensar "Esse desenho saiu perfeito"."
"Mas, como qualquer mãe lhe dirá, quando você está grávida existe aquela sensação de que deixa de ser dona de seu próprio corpo. Então, quando você começa a sentir que tem seus ossos e seu sangue de volta, que eles são seus outra vez, isso é muito bom."
Foi em La Gomera, uma das menos turísticas das ilhas Canárias, diz Björk, que ela começou a recobrar a posse de seu próprio corpo. Seu amigo Richard James tinha falado sobre um aparelhinho extremamente útil que ela carregava junto enquanto caminhava por aí, cantando. "Basicamente, ele lhe permite gravar camadas de vocais enquanto caminha ao ar livre", diz. Assim, a flora e a fauna de La Gomera puderam ouvir uma das primeiras versões de "Pleasure Is All Mine".
Björk diz que quer gravar outro álbum já, em lugar de fazer turnê para divulgar "Medúlla". Ainda em agosto ela espera gravar um videoclipe da canção "Triumph of a Heart", de "Medúlla", com o diretor Spike Jonze, com orçamento pequeno. "A última vez em que Spike e eu ficamos bêbados juntos", ela recorda, rindo, "inventamos uma coisa chamada "The Falling Down Dance". O plano é recriar esse momento em meu pub local, na Islândia."
"Medúlla" será lançado em 30 de agosto, pela One Little Indian.


Tradução de Clara Allain


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