|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MEMÓRIAS
Escritor americano publica "My Lives", novo livro autobiográfico que tem Foucault e Sontag como personagens
Edmund White lança relato de vivências
JOHN FREEMAN
DO "INDEPENDENT"
Por algum acidente imobiliário
ou de karma, a mesma rua de Manhattan abriga três das mais ilustres figuras das artes e letras gays
dos Estados Unidos. No último
quarteirão fica o apartamento do
poeta John Ashbery; nas cercanias, vive Martin Duberman, ensaísta e historiador que libertou
dezenas de homens gays do jugo
da terapia e do ódio a eles mesmos por meio de "Cures", seu livro de memórias; por fim, perto
da Oitava Avenida, onde os adeptos da musculação passeiam aos
sábados, perto dos cafés que ocupam a esquina mais gay na cidade, vive Edmund White. Bem ao
lado de uma igreja.
Para apreciar a ironia dessa justaposição, alguns números vêm a
calhar. Cem, por exemplo, é o número de homens que White diz
ter seduzido antes dos 16 anos.
Outro número importante
-20- representa os anos de vida saudável que ele vem levando
desde que descobriu ser portador
do HIV. Até agora, White é um
dos poucos e afortunados portadores nos quais o vírus não progrediu, o que o deixa perdido no
chamado mundo pós-Aids, com
uma legião de lembranças e um
espírito de "carpe diem". "A despeito do que diz meu médico, eu
jamais consegui recusar um segundo pedaço de bolo", diz o escritor de 65 anos. "Ainda que eu
saiba que isso me faz mal."
O triunfo de White contra a autocensura é uma iluminação para
muitos mas também causa dificuldades ao entrevistador. Estamos falando alguns dias antes do
lançamento de "My Lives", seu livro de memórias. Como fazer
com que "se abra" alguém que já
discorreu sobre estar em uma banheira e ser alvo de urina alheia,
ou sobre suas experiências amarrado em um calabouço? "Sou
muito exibicionista em minha escrita", diz. "Mas sou bastante tímido sobre minha vida quando
encontro alguém cara a cara."
O autor de "A Boy's Own Story"
e outros romances se prova uma
excelente fonte de fofocas, conversação literária e bom humor.
Ele fala rápida e fluentemente, em
tom agudo, e não vacila em levar
um debate às suas últimas conseqüências. Mas não se pode defini-lo, no entanto, como um especialista em ser Edmund White.
Esse conhecimento foi canalizado para seus livros, e "My Lives"
parece ser o trabalho para o qual
ele reservou seus melhores esforços nos últimos 30 anos. "Alan
Hollinghurst diz achar que é o
melhor que já escrevi", declara.
E Hollinghurst, ganhador do
Booker Prize, está certo. O novo
trabalho é o melhor livro de White, aquele que canaliza sua melhor
prosa até agora. Parte do sucesso
deriva da estrutura. "My Lives"
está organizado em longos capítulos temáticos com títulos como
"Minha Mãe", "Minha Europa" e
"Meu Genet". O resultado é um
vislumbre ainda mais pessoal e lírico de sua vida e época. Se seus
romances autobiográficos serviram de modelo para essas memórias, ele agora atingiu a escala
mais perfeita. "Senti que se procedesse cronologicamente, eu me
atolaria na infância, e isso é parte
da nossa cultura da reclamação,
nos EUA. Os lamentos intermináveis sobre a infância."
Como "My Lives" revela, ele
cresceu no interior dos Estados
Unidos muito antes que a casual
hostilidade contra os homossexuais se tornasse uma ferramenta
de eleição à Casa Branca. White
tem mais direito de se alegar texano do que o atual presidente. Ambos os lados de sua família se originam do Texas, onde um de seus
avôs era membro da Ku-Klux-Klan, e o outro, um desajustado.
Com o tempo, a ficção de White
acabou por incorporar a maneira
deslumbrada e frenética pela qual
ele vivia. Depois de duas décadas
importantes para sua formação,
em Nova York, ele se mudou para
Paris, e a cidade se tornou o cenário de seus romances. "Um Jovem
Americano" conduziu a "O Lindo
Quarto Está Vazio" e "The Farewell Symphony", em 1997, que
White acreditava seria seu ultimo
romance. Ele transformou a série
em um quarteto autobiográfico
em 2000, com um romance melancólico sobre a morte, por Aids,
de seu amante Hubert Sorin, "O
Homem Casado".
Um fato interessante quanto ao
poder das narrativas em primeira
pessoa é que embora White tenha
publicado duas coleções de ensaios, uma biografia de Genet,
uma biografia curta de Proust,
dois livros de memórias sobre os
anos parisienses, duas coleções de
contos, um livro de viagens e um
romance histórico, continua mais
conhecido por seu quarteto de romances autobiográficos.
"Acredito que a maioria das
pessoas tenha tendência a reescrever o passado à luz do que veio
mais tarde", diz o escritor.
Ainda que tenha mencionado
apenas de passagem a homossexualidade em seus primeiros romances, "Forgetting Elena" e
"Nocturnes for the King of Naples", White se tornou forte defensor da causa, em pessoa e nos
seus textos, desde então.
Em "My Lives", Susan Sontag
faz uma breve aparição em uma
cena de jantar (antes de romper a
amizade com White devido ao retrato que este pintara dela em
"Caracole"), e o filósofo Michel
Foucault também é mencionado.
White conta tê-lo resgatado de
uma sauna em Nova York, onde o
professor estava passando por
uma "bad trip" de LSD.
Em novembro, o crítico Mark
Simpson atacou White por sua
ideologia "gay-ista", e culpou o
escritor pela exportação do "gay-ismo, uma invenção e exportação
norte-americana".
Já que o parceiro de White há
dez anos filtra esses ataques, o escritor nem sempre fica sabendo a
respeito. Mas isso não quer dizer
que esteja fora de contato. "Creio
que o romance de Alan Hollinghurst ["The Line of Beauty'] seja
um exemplo perfeito de romance
pós-gay", diz, falando sobre a
idéia de que no futuro talvez não
haja um gênero conhecido como
ficção gay. "Acredito que ele teria
escrito o mesmo romance se fosse
heterossexual". Para White, uma
inversão como essa parece improvável. De fato, depois de "My
Lives", parece inteiramente além
do reino da possibilidade.
Tradução Paulo Migliacci
Texto Anterior: Best-seller na mira: Biografia explora origem de Hendrix Próximo Texto: Curta-metragem profético de Mishima vem à tona no Japão Índice
|