São Paulo, sábado, 27 de agosto de 2005

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MEMÓRIAS

Escritor americano publica "My Lives", novo livro autobiográfico que tem Foucault e Sontag como personagens

Edmund White lança relato de vivências

JOHN FREEMAN
DO "INDEPENDENT"

Por algum acidente imobiliário ou de karma, a mesma rua de Manhattan abriga três das mais ilustres figuras das artes e letras gays dos Estados Unidos. No último quarteirão fica o apartamento do poeta John Ashbery; nas cercanias, vive Martin Duberman, ensaísta e historiador que libertou dezenas de homens gays do jugo da terapia e do ódio a eles mesmos por meio de "Cures", seu livro de memórias; por fim, perto da Oitava Avenida, onde os adeptos da musculação passeiam aos sábados, perto dos cafés que ocupam a esquina mais gay na cidade, vive Edmund White. Bem ao lado de uma igreja.
Para apreciar a ironia dessa justaposição, alguns números vêm a calhar. Cem, por exemplo, é o número de homens que White diz ter seduzido antes dos 16 anos. Outro número importante -20- representa os anos de vida saudável que ele vem levando desde que descobriu ser portador do HIV. Até agora, White é um dos poucos e afortunados portadores nos quais o vírus não progrediu, o que o deixa perdido no chamado mundo pós-Aids, com uma legião de lembranças e um espírito de "carpe diem". "A despeito do que diz meu médico, eu jamais consegui recusar um segundo pedaço de bolo", diz o escritor de 65 anos. "Ainda que eu saiba que isso me faz mal."
O triunfo de White contra a autocensura é uma iluminação para muitos mas também causa dificuldades ao entrevistador. Estamos falando alguns dias antes do lançamento de "My Lives", seu livro de memórias. Como fazer com que "se abra" alguém que já discorreu sobre estar em uma banheira e ser alvo de urina alheia, ou sobre suas experiências amarrado em um calabouço? "Sou muito exibicionista em minha escrita", diz. "Mas sou bastante tímido sobre minha vida quando encontro alguém cara a cara."
O autor de "A Boy's Own Story" e outros romances se prova uma excelente fonte de fofocas, conversação literária e bom humor. Ele fala rápida e fluentemente, em tom agudo, e não vacila em levar um debate às suas últimas conseqüências. Mas não se pode defini-lo, no entanto, como um especialista em ser Edmund White.
Esse conhecimento foi canalizado para seus livros, e "My Lives" parece ser o trabalho para o qual ele reservou seus melhores esforços nos últimos 30 anos. "Alan Hollinghurst diz achar que é o melhor que já escrevi", declara.
E Hollinghurst, ganhador do Booker Prize, está certo. O novo trabalho é o melhor livro de White, aquele que canaliza sua melhor prosa até agora. Parte do sucesso deriva da estrutura. "My Lives" está organizado em longos capítulos temáticos com títulos como "Minha Mãe", "Minha Europa" e "Meu Genet". O resultado é um vislumbre ainda mais pessoal e lírico de sua vida e época. Se seus romances autobiográficos serviram de modelo para essas memórias, ele agora atingiu a escala mais perfeita. "Senti que se procedesse cronologicamente, eu me atolaria na infância, e isso é parte da nossa cultura da reclamação, nos EUA. Os lamentos intermináveis sobre a infância."
Como "My Lives" revela, ele cresceu no interior dos Estados Unidos muito antes que a casual hostilidade contra os homossexuais se tornasse uma ferramenta de eleição à Casa Branca. White tem mais direito de se alegar texano do que o atual presidente. Ambos os lados de sua família se originam do Texas, onde um de seus avôs era membro da Ku-Klux-Klan, e o outro, um desajustado.
Com o tempo, a ficção de White acabou por incorporar a maneira deslumbrada e frenética pela qual ele vivia. Depois de duas décadas importantes para sua formação, em Nova York, ele se mudou para Paris, e a cidade se tornou o cenário de seus romances. "Um Jovem Americano" conduziu a "O Lindo Quarto Está Vazio" e "The Farewell Symphony", em 1997, que White acreditava seria seu ultimo romance. Ele transformou a série em um quarteto autobiográfico em 2000, com um romance melancólico sobre a morte, por Aids, de seu amante Hubert Sorin, "O Homem Casado".
Um fato interessante quanto ao poder das narrativas em primeira pessoa é que embora White tenha publicado duas coleções de ensaios, uma biografia de Genet, uma biografia curta de Proust, dois livros de memórias sobre os anos parisienses, duas coleções de contos, um livro de viagens e um romance histórico, continua mais conhecido por seu quarteto de romances autobiográficos.
"Acredito que a maioria das pessoas tenha tendência a reescrever o passado à luz do que veio mais tarde", diz o escritor.
Ainda que tenha mencionado apenas de passagem a homossexualidade em seus primeiros romances, "Forgetting Elena" e "Nocturnes for the King of Naples", White se tornou forte defensor da causa, em pessoa e nos seus textos, desde então.
Em "My Lives", Susan Sontag faz uma breve aparição em uma cena de jantar (antes de romper a amizade com White devido ao retrato que este pintara dela em "Caracole"), e o filósofo Michel Foucault também é mencionado. White conta tê-lo resgatado de uma sauna em Nova York, onde o professor estava passando por uma "bad trip" de LSD.
Em novembro, o crítico Mark Simpson atacou White por sua ideologia "gay-ista", e culpou o escritor pela exportação do "gay-ismo, uma invenção e exportação norte-americana".
Já que o parceiro de White há dez anos filtra esses ataques, o escritor nem sempre fica sabendo a respeito. Mas isso não quer dizer que esteja fora de contato. "Creio que o romance de Alan Hollinghurst ["The Line of Beauty'] seja um exemplo perfeito de romance pós-gay", diz, falando sobre a idéia de que no futuro talvez não haja um gênero conhecido como ficção gay. "Acredito que ele teria escrito o mesmo romance se fosse heterossexual". Para White, uma inversão como essa parece improvável. De fato, depois de "My Lives", parece inteiramente além do reino da possibilidade.


Tradução Paulo Migliacci

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