São Paulo, quinta-feira, 27 de agosto de 2009

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NINA HORTA

A beleza do simples


Você imagina que uma pensadora não se dedicaria a detalhes de uma casa, mas Lina Bo Bardi se dedica, sim


TUDO ESTÁ mesmo relacionado com a comida. Arquitetura, então! Um artigo meu já saiu numa revista de arquitetura, e um pedaço dele era este: "Comida boa é comida sob a perspectiva de nós próprios e de nosso mundo, mas sem esquecer o outro, que vai nos confirmar ainda mais quem somos. Cozinhar bem é estar solto, sem vergonha de mostrar a cara, fiéis a nós mesmos, ao nosso grupo, à nossa gente".
E vejam uma citação do arquiteto Luigi Piccinato: "O princípio básico para se fazer arquitetura é procurar redescobrir e valorizar os materiais que nos são oferecidos, aceitá-los, esses materiais, sem camuflá-los e sem envergonhar-se deles, mas, ao contrário, exaltá-los". Pois não é que os dois parágrafos servem para a arquitetura e para a comida?
Quando chego para fazer um jantar numa casa em que não se pode usar a mesa porque é de material que mancha, acho que deve haver alguma coisa podre no reino da Dinamarca. Como precisar enfaixar uma mesa como se fosse uma obra de Cristo? Para que serve, então, a mesa, se não serve para se comer sobre ela e, eventualmente, derrubar o vinho?
Bom, o que quero dizer é que adorei o livro da Cosac Naify "Lina por Escrito", com coletânea de artigos da arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi. E não vou resenhá-lo, só dizer que gostei por ser cozinheira, e não arquiteta.. São 33 textos, dos anos 40 aos 90, em que ela luta pela beleza do simples, abre nossos olhos para a importância da arte popular, tenta formar um público crítico, sempre corajosa nas suas atitudes, divulgando a arquitetura como profissão, a importância do planejamento urbano, a industrialização, o design e mais e mais. Você imagina que uma pensadora não se dedicaria a detalhes de uma casa, mas ela se dedica, sim, muito, procurando funcionalidade e tendo como decorrência dela a beleza. Pensava na colher de pau, no bule de lata, na moringa, na lixeira. Acho que nos fazem falta os arquitetos palradores, que nos mostrem tanto seus projetos quanto a explicação escrita deles.
O que pensaria ela dos condomínios de luxo, dos bunkers de mármore, dos carros blindados, desta arquitetura desconfiada, contra o outro, contra o bairro, contra a calçada, contra a rua, contra o mundo?
Arquitetura medrosa. Anti-hospitaleira. Atrás do bufê tem uma vila de casas mínimas onde era gostoso espichar as pernas, dar uma volta no quarteirão, observando as casinhas bem tratadas, conversando com um morador aqui, outro ali. Pois não é que puseram portões altos dos dois lados? Mas isso é legal? Perdemos o quarteirão. Não era nosso? De quem era? E esses portões tomam conta de que fortuna? Com porteiro e tudo? São macaquices para fingir status, isto sim.
Reparem no Sesc Pompeia. Sempre acho graça naqueles buracos na parede para ventilar. Tipo ovo de Colombo. Não vai ter ar refrigerado.
Então, vamos fazer correnteza no edifício para estar sempre fresquinho. E a facilidade para se entrar lá, e a mistura completa de gente de toda a idade, espalhada, se divertindo, dançando, escrevendo, pintando, conversando... Acho que deu certo.
Uma reflexão da Lina Bo Bardi, de pós-guerra, depois de ver as casas ruírem. "Foi então, enquanto as bombas demoliam sem piedade a obra e a obra do homem, que compreendemos que a casa deve ser para a "vida" do homem... os móveis devem servir, as cadeiras para sentar, as mesas para comer, as poltronas para ler e repousar, as camas para dormir... [a casa] uma aliada do homem, ágil e serviçal, e que pode, como o homem, morrer..."
Podemos aprender muito com esse livro. Hoje mesmo vou começar a jogar fora coisas do meu bazar turco, tanto na cozinha, como na culinária e na vida. Pela décima vez.

ninahorta@uol.com.br


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