São Paulo, Quarta-feira, 27 de Outubro de 1999
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MÚSICA
Ivete Sangalo lança hoje, em Salvador, seu disco solo; em entrevista, fala do disco e da sua carreira
"Sou Elis Regina. Fui num spa me esticar"

Adriana Zehbrauskas/Folha Imagem
Ivete Sangalo, que lança hoje "Ivete Sangalo" em Salvador


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

Ivete Sangalo já entregou rapadura para seu conterrâneo João Gilberto. Tempos depois, João, cacique da bossa nova e hoje neo-vaiado, cantou para a moça, ao telefone, em tom de bossa, "Carro Velho" ("cheiro de pneu queimado, carburador furado, coração dilacerado"), sucesso da banda de axé Eva, que expeliu Ivete ao mapa musical brasileiro.
Prova de fidelidade à Bahia ou sinal da geléia geral brasileira, o flerte -descrito por ela, sob o silêncio de João- emblematiza uma nova era que vai se inaugurando na MPB.
À caça de legitimidade, Ivete, 27, apresenta em show hoje, em Salvador, seu disco de Carnaval de meio de ano, "Ivete Sangalo".
Aqui, mostra um pouco de quem é em entrevista na qual conta a história com João e dá sua versão sobre o caso Elza Soares (a sambista teve de recolher seu novo disco, independente, porque Ivete teria exigido exclusividade da canção "Sá Marina", sucesso com Wilson Simonal nos anos 60, que ambas haviam regravado).

Folha - Por que você não se posicionou oficialmente sobre o caso Elza Soares?
Ivete Sangalo -
A gente nunca conseguiu falar porque não estava a par do assunto. A queixa de Elza é direcionada à gravadora, e em parte ela tem razão. Pela própria hierarquia da música, ela tem o direito de gravar o que bem entender. O disco já pronto, prensado, recebi a galinha pulando nos peitos. Me coloquei solidária a ela.

Folha - Você não tinha o poder de liberar a música para ela?
Ivete -
Mas eu não soube. Foi um problema de gravadora com editora, dos caras da gravadora quererem a música só pra mim e não terem me dito. Eu soube pelo jornal, acho que pela Folha.

Folha - Foi um caso de a corda arrebentar do lado mais fraco.
Ivete -
Isso é um fato, não posso ir contra. Sou uma cantora que está numa gravadora que tem força. Mas eu não sabia, se soubesse teríamos feito da melhor forma. Diante de tantas perguntas que têm me feito, vou procurar um posicionamento do presidente da gravadora, até perguntar a ele o que eu tenho de responder.

Folha - Em que seu disco solo é diferente dos da Banda Eva?
Ivete -
O que mudou é que o repertório todo foi escolhido por mim. Tomei tenência da minha carreira tem três anos. Até então, na Banda Eva, eu só ia pôr a voz.

Folha - O massacre de axé que rádio e TV fazem não espalha demais o Carnaval pelo resto do ano? Há razão para festejar?
Ivete -
Meu dever é seguir meu instinto. O que não vou deixar é um acorde errado no meu disco. É tecnicamente perfeito. Se está massacrado na TV? Eu adoro Chitão e Xororó, mas há outras duplas que acho abomináveis. E não acho que o Brasil seja uma festa de rodeio, mesmo tendo em todo lugar. Na música baiana é a mesma coisa, há coisas abomináveis, que não prestam. Acho maravilhoso ter Carnaval o ano inteiro. Se expandiu porque é uma necessidade do público, de se divertir. É namoro, birita, música.

Folha - E se, além de divertir, o excesso disso desviar atenção de todo o resto, desde outros tipos de música até a corrupção generalizada na política?
Ivete -
Ah, certo. Mas ainda vou dizer: politicamente falando, sou leiga no assunto. Minha geração não teve muito de ir para a rua fazer passeata. Não sou tão politizada quanto Caetano Veloso. São tantas falcatruas e coisas sujas que eu talvez não tenha discernimento para ver o que é certo ou errado. Sou cumpridora da lei, deixo uma grana para um governo que não tem saúde nem educação.

Folha - O trio elétrico não é uma forma de palanque?
Ivete -
Eu tenho esse discurso. Falo isso nos shows. Mas o país tem dirigentes, não tem de ter uma comissão para derrubar os dirigentes. E não vou perder meu veículo, que é o Carnaval, em função de uma coisa que não é dever meu apenas.

Folha - O artista nos anos 90 se transformou em empresa, cuidando impecavelmente de qualidade técnica, imagem, marketing. Isso não traz perda de espontaneidade?
Ivete -
O mundo pede isso. Hoje tenho muito mais referências que ajudam a promover a artista que sou eu mesma. A capa do meu CD é assim porque Luiz Stein, que a fez, me mostrou um livro do David LaChapelle, que é moderno.

Folha - Sua capa não lembra LaChapelle.
Ivete -
Eu não fui ainda mais rock'n'roll porque é muito angelical. Ivete mudou, mas não de personalidade. Não posso dizer, depois de seis meses, "olha, tenho um trabalho experimental"...

Folha - A música de axé não parece muito padronizada?
Ivete -
Sim. A bossa nova é assim. Até hoje nego grava "Desafinado" e eu estou de saco cheio dessas regravações. Sem querer dizer que você não sabe do que está falando, temos células percussivas no disco que ainda não haviam sido colocadas em música baiana, que, em meio aos acordes, soa parecido.

Folha - É como LaChapelle, fica tão diluído que nem aparece.
Ivete -
Ele mostra, se a gente ouvir ele mostra. Eu não podia colocar isso como prioridade. Eu sou uma imagem. Não tenho paciência para fazer um disco intimista.

Folha - Que lugar você gostaria de ocupar na MPB?
Ivete -
Nada, nada. Apenas queria ter gerência sobre o que faço. Tenho orgulho de ser elogiada por Gil, Caetano. Falei com João Gilberto no telefone e ele tocou e cantou "Carro Velho" para mim daquele jeito dele, quase me caguei toda. Somos da mesma cidade, Juazeiro, e já levei umas rapaduras para ele (ri). Um sobrinho dele é amigo meu, e ele fez umas encomendas de rapadura. Eu estava na Banda Eva, acho que foi meu maior passo na música até hoje (ri). As rapaduras foram "in air" de Salvador ao Rio, by Ivete Sangalo delivery. Mandei a rapadura com um bilhete. Passaram-se os anos e alguém da gravadora, que assinou com ele também, me contou que ele queria gravar comigo. Aí houve o telefonema no meu escritório, conversei com ele, disse que estava feliz de uma conterrânea dele ter atingido o sucesso merecido. Pediu um minuto, pegou o violão e cantou.

Folha - E essa gravação dos dois vai acontecer?
Ivete -
Eu acredito que... tomara. Eu acredito que tomara, a frase é essa.

Folha - Quais são suas referências na MPB?
Ivete -
Sou muito fã de Elis Regina. Ela era meio como eu, versátil, movimentava o repertório. Não estava nem aí com estética do disco, com o que crítico ia falar.

Folha - É por isso que seu disco tem arranjos de Cesar Camargo Mariano, que foi marido dela e músico dela e do Simonal, que você também gravou agora?
Ivete -
Tenho uma coisa para falar. Eu sou Elis Regina (finge chorar), fui num spa me esticar. Brincadeira. Tenho discos instrumentais do Cesar, mas claro que o conheci pelo trabalho dela também. O disco dela em Montreux é maravilhoso, veridicamente ao vivo. Não vamos entrar na questão, mas conheço discos ao vivo que não são ao vivo.

Folha - Axé music ultimamente tem sido toda ao vivo...
Ivete -
Não seja preconceituoso. Garanto que o meu foi ao vivo.

Folha - Axé é uma moda?
Ivete -
Não é moda. Diziam que rock era moda, e Paralamas estão aí até hoje e muitos grupinhos de mentirinha se foram. Se não tem consistência, não fica.

Folha - Quem ficou precisou se adaptar ao fim do modismo.
Ivete -
Mas tudo muda. Nada se cria, tudo se copia.

Folha - Nada se cria, tudo se copia?
Ivete -
É.

Folha - Nada se cria?
Ivete -
Não... Tudo se cria, tudo se copia. Tem de se criar alguma coisa. É a história do ovo e da galinha. Tem muita gente aí que fala que está fazendo um "trabalho" (dá entonação caricatural) e não vejo acontecer nada. Se sua música não toca no rádio, companheiro, vá ver seu trabalho e seu disco.

Folha - O jabá ajuda muita gente a tocar no rádio.
Ivete -
E eu com isso? Não vou mudar a índole humana.


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