São Paulo, Quarta-feira, 27 de Outubro de 1999
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CRÍTICA
Moça da rapadura era de carne e osso

da Reportagem Local


Os supra-homens estão em todo lugar. Na música brasileira, especificamente na axé music, os supra-homens seguem suas vidas aeróbicas movidas a dólar.
Autoprogramáveis, mexem a bunda aqui, levantam os braços ali, comandam a massa acolá. Não se permitem nenhum erro, pois são sempre perfeitos em sua maquinalidade.
Clonam -aperfeiçoam- vícios de interpretação, forram o pretexto da festa dionisíaca percussiva com sintetizadores desalmados, com sopros paralâmicos, até com objetos de percussão que acabam soando mais parecidos com sintetizadores.
E Ivete Sangalo é o protótipo da supra-mulher, pronta para o ciberespaço.
Não deixará que a questionem tecnicamente, pois é perfeita, ainda que esganice seus vícios interpretativos feito louca.
O problema dos supra-homens -e da supra-mulher- é que eles são robôs (andróides, como diria o conterrâneo baiano Tom Zé).
Plugados no piloto automático e automatizados na festa-o-ano-inteiro-o-dia-inteiro -antes, cantores de Carnaval lançavam seus sambas-canção de meio de ano, agora o Carnaval é espraiado para agosto, setembro, outubro, "Faustão", "Gugu" (bem, nem tanto, que a música axé nem o disco solo da Ivete estão mais com tanta bola).
Não é coincidência que Ivete invoque com a soul music, primeiro gravando Cassiano (ainda com a primeva Banda Eva, encenação aeróbica do instante de criação, para o novo mundo de Adão e Eva supra-humanos, pós-Sasha) e agora, solo, duetando com Ed Motta ("Medo de Amar", olha o título), aliciando o arranjador Cesar Camargo Mariano (papa do soul branco em seus trabalhos com Elis e Simonal), regravando Simonal (em versão caribenha de "Sá Marina").
Ivete quer provar que tem "soul", embora fique claro que não tem.
Soa menos viável aí que em "Canibal", que termina com uma garotinha, uma sashinha cantando "vamos brincar de índio, mas sem mocinho...". A imperatriz do novo mundo é Xuxa, robô-mãe, clonadora de menininhas, tiazinhas, carlinhas, lucianos hucks.
Mulher de plástico, Ivete porta a bandeira dos junkies do yuppismo, pulando aeróbica ("Música pra Pular Brasileira" -Haroldo Lobo, Novos Baianos, trio elétrico e Xuxa despriorizados-, "100 o Seu Amor", olha o título, "Tô na Rua") para não se cansar, não perder o pique.
Supra-mulher, faz bonitinho com João Bosco em "Tenho Dito", mas trança as pernas ao tentar se humanizar.
Ela não pode, como a própria cantora diz, ter ouvido a música "Tenho Dito" a vida inteira, desde os seus tempos de criança, porque quando João Bosco cantou "Tenho Dito" ela já tinha 17 anos -sua vida não é tão curta assim, embora pareça.
Há quem diga que o tecno é técnico, seco, inumano, desalmado. Talvez seja, em seus (muitos) extremos mais toscos e estéreis.
Assim é também a música popular brasileira.
De carne e osso mesmo era a moça que levou rapadura para João Gilberto. O velho mundo está morrendo.
(PAS)


Avaliação: 


Disco: Ivete Sangalo Artista: Ivete Sangalo Lançamento: Universal Quanto: R$ 18, em média

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