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MARCELO COELHO
"A Bruxa de Blair" e o factóide cultural
Tenho de confessar uma coisa
meio chata: não dou conta do que
há para ver, ouvir, comentar, criticar.
Tudo se torna "imperdível". Haja fôlego! Eu ainda não enfrentei
"A Bruxa de Blair" e já me dizem
que o importante, agora, é ver
"Clube da Luta", filme de David
Fincher com Brad Pitt.
Eis o que escreve Gerald Thomas, de Nova York, na Ilustrada
de anteontem: "Espere por esse filme com os punhos cerrados. Se o
resto da América fez contagem regressiva para a estréia de "Star
Wars" (...), o mundo cult e intelectual americano começou a ser
provocado pelo "Clube da Luta" já
há alguns meses".
Já estou atrasado, portanto.
Não esperava nada; eis que aparece um filme que é a "Laranja
Mecânica" dos anos 90, segundo
Gerald Thomas. E eu que ainda
nem vi "A Bruxa de Blair"...
Para não falar da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Ouvi dizer que há pessoas que tiram férias só para acompanhar
integralmente o festival do Cakoff. Já eu precisaria de férias, isso
sim, para descansar depois da
Mostra, se tivesse acompanhado
sua programação.
Vou adotando um tom irônico,
mas a questão é séria. Outro dia,
na rádio CBN, ouvi uma declaração espantosa de um consultor de
empresas. Posso estar enganado,
mas o que ouvi foi o seguinte.
Antigamente, dizia o consultor,
uma fábrica de produtos eletrônicos (acho que foi a Motorola que
ele usou como exemplo) demorava um ou dois anos para desenvolver um novo produto e lançá-lo no mercado.
Hoje, dizia o consultor, a mesma empresa lança produtos novos
a cada 28 dias.
Não sei se estou sendo exato,
mas basta pensar no mercado de
computadores. Se você esperar
uma semana, poderá comprar
um modelo mais avançado. Sempre mais avançado.
Não é só num filme de sucesso
que o ritmo das cenas se acelera.
Não é só o espectador que é bombardeado por imagens e choques
sucessivos, que lhe roubam o tempo da reflexão, da experiência.
A própria sucessão dos filmes
imperdíveis se acelera; o "zapping" se faz não apenas dentro da
tela, mas fora dela também, pelo
calendário cultural.
Uma das mais clássicas evidências da irracionalidade do capitalismo é a chamada "obsolescência
programada". Ou seja, um produto que poderia durar 20 anos é
programado para durar cinco
apenas, de modo a manter funcionando o sistema da produção, da
propaganda, do emprego e do
consumo.
Talvez seja sintoma de crise o
fato de que essa obsolescência, essa irracionalidade, se conte não
mais em anos, mas em meses, em
dias, em horas.
O jornalismo cultural se vê, então, numa situação difícil: tem de
noticiar a cada semana o grande
acontecimento em curso. Pela primeira vez, acredito, o mundo da
cultura se submete ao ritmo do
jornal diário. Com uma contrapartida irônica: o jornal diário
passa a obedecer à dinâmica do
mundo cultural.
Provavelmente, "A Bruxa de
Blair" é apenas um factóide. "Clube da Luta" está no mesmo nível
de "Star Wars"; tudo se mobiliza,
agora, em torno disso, como se
mobilizou em torno do filme de
Kubrick.
Tudo se torna esquecível, descartável. A velha idéia de que jornal serve para embrulhar peixe no
dia seguinte se torna mais verdadeira do que nunca à medida que
o grande filme da semana será velho na próxima segunda-feira.
De modo que não me sinto apto
a comentar "A Bruxa de Blair" ou
"Clube da Luta" ou o último episódio de "Star Wars". Tudo é tão
mercadológico que até interpretar
sociologicamente o sucesso dessas
produções se torna corrupção intelectual e jornalística.
A interpretação, por mais iluminista que seja, se vê dominada pelo ritmo do "lançamento". Por
mais "de esquerda" que seja, obedece à dinâmica olvidável do
mercado.
Gostaria de dizer não a tudo isso. Ignorei "A Bruxa de Blair",
desprezo e não quero ver "Clube
da Luta". Esses filmes exigem comentário, pedem interpretação
sociológica. Mas responder a esse
convite já é corrupção.
O tom deste artigo contrasta com
o do anterior, que louvava a jogada de marketing da Sony em torno dos cem grandes pianistas do
século. Relendo o texto, vejo um
tom esperançoso no elogio que fiz
ao virtuosismo técnico, que no
fundo é mercadológico.
Disse que na pirotecnia dos pianistas pode haver um valor estético, ainda que extramusical.
É verdade. Mas cometi um erro,
movido pela pirotecnia verbal, algo romântica, que quis exercer.
Falei que o nome do pianista Josef
Lhevinne evocava um glissando
"cromático". Qualquer aluno de
conservatório sabe que não é possível fazer um glissando cromático (isto é, incluindo as teclas pretas e as brancas) no piano. Erro
lamentável. Mas que Lhevinne
realizava essa impossibilidade,
acho que realizava sim.
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