São Paulo, Quarta-feira, 27 de Outubro de 1999
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MARCELO COELHO
"A Bruxa de Blair" e o factóide cultural

Tenho de confessar uma coisa meio chata: não dou conta do que há para ver, ouvir, comentar, criticar.
Tudo se torna "imperdível". Haja fôlego! Eu ainda não enfrentei "A Bruxa de Blair" e já me dizem que o importante, agora, é ver "Clube da Luta", filme de David Fincher com Brad Pitt.
Eis o que escreve Gerald Thomas, de Nova York, na Ilustrada de anteontem: "Espere por esse filme com os punhos cerrados. Se o resto da América fez contagem regressiva para a estréia de "Star Wars" (...), o mundo cult e intelectual americano começou a ser provocado pelo "Clube da Luta" já há alguns meses".
Já estou atrasado, portanto. Não esperava nada; eis que aparece um filme que é a "Laranja Mecânica" dos anos 90, segundo Gerald Thomas. E eu que ainda nem vi "A Bruxa de Blair"...
Para não falar da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Ouvi dizer que há pessoas que tiram férias só para acompanhar integralmente o festival do Cakoff. Já eu precisaria de férias, isso sim, para descansar depois da Mostra, se tivesse acompanhado sua programação.
Vou adotando um tom irônico, mas a questão é séria. Outro dia, na rádio CBN, ouvi uma declaração espantosa de um consultor de empresas. Posso estar enganado, mas o que ouvi foi o seguinte.
Antigamente, dizia o consultor, uma fábrica de produtos eletrônicos (acho que foi a Motorola que ele usou como exemplo) demorava um ou dois anos para desenvolver um novo produto e lançá-lo no mercado.
Hoje, dizia o consultor, a mesma empresa lança produtos novos a cada 28 dias.
Não sei se estou sendo exato, mas basta pensar no mercado de computadores. Se você esperar uma semana, poderá comprar um modelo mais avançado. Sempre mais avançado.
Não é só num filme de sucesso que o ritmo das cenas se acelera. Não é só o espectador que é bombardeado por imagens e choques sucessivos, que lhe roubam o tempo da reflexão, da experiência.
A própria sucessão dos filmes imperdíveis se acelera; o "zapping" se faz não apenas dentro da tela, mas fora dela também, pelo calendário cultural.
Uma das mais clássicas evidências da irracionalidade do capitalismo é a chamada "obsolescência programada". Ou seja, um produto que poderia durar 20 anos é programado para durar cinco apenas, de modo a manter funcionando o sistema da produção, da propaganda, do emprego e do consumo.
Talvez seja sintoma de crise o fato de que essa obsolescência, essa irracionalidade, se conte não mais em anos, mas em meses, em dias, em horas.
O jornalismo cultural se vê, então, numa situação difícil: tem de noticiar a cada semana o grande acontecimento em curso. Pela primeira vez, acredito, o mundo da cultura se submete ao ritmo do jornal diário. Com uma contrapartida irônica: o jornal diário passa a obedecer à dinâmica do mundo cultural.
Provavelmente, "A Bruxa de Blair" é apenas um factóide. "Clube da Luta" está no mesmo nível de "Star Wars"; tudo se mobiliza, agora, em torno disso, como se mobilizou em torno do filme de Kubrick.
Tudo se torna esquecível, descartável. A velha idéia de que jornal serve para embrulhar peixe no dia seguinte se torna mais verdadeira do que nunca à medida que o grande filme da semana será velho na próxima segunda-feira.
De modo que não me sinto apto a comentar "A Bruxa de Blair" ou "Clube da Luta" ou o último episódio de "Star Wars". Tudo é tão mercadológico que até interpretar sociologicamente o sucesso dessas produções se torna corrupção intelectual e jornalística.
A interpretação, por mais iluminista que seja, se vê dominada pelo ritmo do "lançamento". Por mais "de esquerda" que seja, obedece à dinâmica olvidável do mercado.
Gostaria de dizer não a tudo isso. Ignorei "A Bruxa de Blair", desprezo e não quero ver "Clube da Luta". Esses filmes exigem comentário, pedem interpretação sociológica. Mas responder a esse convite já é corrupção.
O tom deste artigo contrasta com o do anterior, que louvava a jogada de marketing da Sony em torno dos cem grandes pianistas do século. Relendo o texto, vejo um tom esperançoso no elogio que fiz ao virtuosismo técnico, que no fundo é mercadológico.
Disse que na pirotecnia dos pianistas pode haver um valor estético, ainda que extramusical.
É verdade. Mas cometi um erro, movido pela pirotecnia verbal, algo romântica, que quis exercer. Falei que o nome do pianista Josef Lhevinne evocava um glissando "cromático". Qualquer aluno de conservatório sabe que não é possível fazer um glissando cromático (isto é, incluindo as teclas pretas e as brancas) no piano. Erro lamentável. Mas que Lhevinne realizava essa impossibilidade, acho que realizava sim.


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