São Paulo, segunda-feira, 27 de outubro de 2008

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Crítica/ "Crônica na Pedra"

Menos do que realismo mágico, Kadaré enfatiza realidade "orgânica"

MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os seres inanimados descritos nesta "Crônica na Pedra", de Ismail Kadaré -das gotas de chuva ao rio Zall, das chaminés à própria Gjirokastra, a cidade das casas de pedra onde nasceu o escritor-, pulsam, movem-se e enredam como qualquer ente vivo sobre a face da terra.
Assim, as gotas d'água podem, "inermes de pavor", ser recolhidas a um balde para lavarem escadas e roupas. As "torrentes traiçoeiras" do rio ganham vida e, num assomo de cólera, tentam engolfar a estrada, que "com certeza odiava o rio". A luz projetada por um holofote cola-se à cidade como "animal marinho e viscoso".
Essas descrições somam-se ao relato dos assombros de um povo cujas origens se confundem com a dos heróis homéricos e cujos antepassados viram passar os cruzados.
Nesta cidade que, como "um ser pré-histórico", galgou a face da montanha, a carcaça das aves indica os sinais do futuro, os feitiços são uma presença a ser temida, as velhas atingem idades matusalênicas, uma jovem adquire barba e um suposto hermafrodita granjeia a intimidade de moças castas.
Menos do que se filiar a um realismo "mágico", o procedimento de Kadaré enfatiza uma realidade orgânica, que se arroga a uma antigüidade anticientífica.
Nessa conjuntura, os óculos são considerados instrumento do demônio. Suas lentes descobririam um mundo "rígido e avarento", que nada oferece "além do que é". Ao contrário, o olhar do menino (principal perspectiva do romance) em geral prescindindo deste auxílio ótico, mostra os fatos "por trás de uma nuvem de vapor".

Guerra
No início, esse contexto esfumado se rompe aqui e ali diante da realidade da ocupação da Itália fascista. Depois, os indícios de "progresso" se atrelam aos sinais alados da destruição: o aeroporto em construção, os fascinantes bombardeiros, os ataques aéreos ingleses.
No fim, são os ventos da guerrilha comunista que procuram conduzir a Albânia aos tempos modernos. Não por acaso um dos jovens guerrilheiros é, antes de aderir à luta, criticado pelos mais velhos justamente por aparecer de óculos.
É esse mesmo personagem que empresta ao narrador o volume de "Macbeth", cujas imagens mais tarde serviriam para o menino ilustrar os horrores promovidos tanto pelas forças de ocupação quanto pelas milícias albanesas. Não se deve esquecer que o ditador Enver Hodja iniciou na resistência. E, coincidência ou não, nasceu nesta cidade feita de pedra.
Talvez por não se adequar às normas de uma literatura "engajada", talvez pelos sinais ambíguos que emite, "Crônica na Pedra" foi mal recebido quando saiu na Albânia nos anos 70.
Modificada pelo autor, passou com os anos a ser visto não só como momento de cristalização de sua técnica e suas obsessões, mas também manancial para os romances posteriores.
Como nas camadas estratificadas da história albanesa, que se evidenciam no livro tanto na gente quanto nas coisas, a ficção de Kadaré se espraia para frente e para trás, dando pistas sobre seu caráter no próprio movimento que a transforma.


MARCELO PEN é professor de teoria literária na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

CRÔNICA NA PEDRA
Autor: Ismail Kadaré
Tradução: Bernardo Joffily
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 44 (280 págs.)
Avaliação: ótimo



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