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Crítica/ "Crônica na Pedra"
Menos do que realismo mágico, Kadaré enfatiza realidade "orgânica"
MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA
Os seres inanimados
descritos nesta "Crônica na Pedra", de Ismail Kadaré -das gotas de chuva ao rio Zall, das chaminés à
própria Gjirokastra, a cidade
das casas de pedra onde nasceu
o escritor-, pulsam, movem-se
e enredam como qualquer ente
vivo sobre a face da terra.
Assim, as gotas d'água podem, "inermes de pavor", ser
recolhidas a um balde para lavarem escadas e roupas. As
"torrentes traiçoeiras" do rio
ganham vida e, num assomo de
cólera, tentam engolfar a estrada, que "com certeza odiava o
rio". A luz projetada por um holofote cola-se à cidade como
"animal marinho e viscoso".
Essas descrições somam-se
ao relato dos assombros de um
povo cujas origens se confundem com a dos heróis homéricos e cujos antepassados viram
passar os cruzados.
Nesta cidade que, como "um
ser pré-histórico", galgou a face
da montanha, a carcaça das
aves indica os sinais do futuro,
os feitiços são uma presença a
ser temida, as velhas atingem
idades matusalênicas, uma jovem adquire barba e um suposto hermafrodita granjeia a intimidade de moças castas.
Menos do que se filiar a um
realismo "mágico", o procedimento de Kadaré enfatiza uma
realidade orgânica, que se arroga
a uma antigüidade anticientífica.
Nessa conjuntura, os óculos são
considerados instrumento do
demônio. Suas lentes descobririam um mundo "rígido e avarento", que nada oferece "além
do que é". Ao contrário, o olhar
do menino (principal perspectiva do romance) em geral prescindindo deste auxílio ótico,
mostra os fatos "por trás de uma
nuvem de vapor".
Guerra
No início, esse contexto esfumado se rompe aqui e ali diante
da realidade da ocupação da
Itália fascista. Depois, os indícios de "progresso" se atrelam
aos sinais alados da destruição:
o aeroporto em construção, os
fascinantes bombardeiros, os
ataques aéreos ingleses.
No fim, são os ventos da
guerrilha comunista que procuram conduzir a Albânia aos
tempos modernos. Não por
acaso um dos jovens guerrilheiros é, antes de aderir à luta, criticado pelos mais velhos justamente por aparecer de óculos.
É esse mesmo personagem
que empresta ao narrador o volume de "Macbeth", cujas imagens mais tarde serviriam para
o menino ilustrar os horrores
promovidos tanto pelas forças
de ocupação quanto pelas milícias albanesas. Não se deve esquecer que o ditador Enver
Hodja iniciou na resistência. E,
coincidência ou não, nasceu
nesta cidade feita de pedra.
Talvez por não se adequar às
normas de uma literatura "engajada", talvez pelos sinais ambíguos que emite, "Crônica na
Pedra" foi mal recebido quando
saiu na Albânia nos anos 70.
Modificada pelo autor, passou
com os anos a ser visto não só
como momento de cristalização de sua técnica e suas obsessões, mas também manancial
para os romances posteriores.
Como nas camadas estratificadas da história albanesa, que
se evidenciam no livro tanto na
gente quanto nas coisas, a ficção de Kadaré se espraia para
frente e para trás, dando pistas
sobre seu caráter no próprio
movimento que a transforma.
MARCELO PEN é professor de teoria literária na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
CRÔNICA NA PEDRA
Autor: Ismail Kadaré
Tradução: Bernardo Joffily
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 44 (280 págs.)
Avaliação: ótimo
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