São Paulo, terça-feira, 28 de fevereiro de 2006

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BERNARDO CARVALHO

Com o rabo entre as pernas

A liberdade de expressão garante, em princípio, até ao mais completo idiota, o direito de se manifestar. Você pode achar que é o caso deste colunista. Você pode se irritar, recorrer à Justiça no caso de calúnia ou difamação, mas censurar não está entre as suas opções. E isso é fundamental. É claro que há formas veladas e indiretas (econômicas, por exemplo) de controle dessa liberdade (o jornal pode publicar o idiota X e não o Y, dependendo dos seus interesses). Mas, se não viver num país como a China, o idiota Y sempre poderá recorrer ao seu blog para manifestar as suas opiniões, por mais idiotas que sejam.
Entre as reações na mídia ocidental às manifestações violentas contra as charges que representavam o profeta Muhammad, mais de um escritor ou intelectual acusou o Ocidente de se servir da liberdade de expressão segundo um princípio de dois pesos e duas medidas. Curiosamente, um desses autores, ao mesmo tempo em que condenava as charges, para ele indefensáveis, defendia o direito incontestável à liberdade de expressão de uma obra como "Os Versos Satânicos", de Salman Rushdie, por se tratar de literatura. Ou seja, a arte, por ser arte, deveria gozar de liberdade irrestrita de expressão. Já a charge, por ser charge, deveria estar submetida a critérios mais relativos.
O raciocínio reproduzia um preconceito comum -e uma idiotia. É lógico que ninguém de bom senso confunde uma charge com literatura. Mas o que é literatura para mim pode não ser para o autor do artigo. E é justamente por causa disso que não cabe distinguir entre uma charge e uma obra de arte, nem entre o que é de mau ou de bom gosto, quando o princípio é o da liberdade de expressão.
Você pode, por exemplo, considerar que a obra do Marquês de Sade é ofensiva e de mau gosto, ou que nem é literatura (e, de fato, mesmo na França do final dos anos 50, o editor Jean-Jacques Pauvert foi condenado judicialmente por publicá-la). Reconhecida como literatura, entretanto, a obra de Sade depende tanto do direito à blasfêmia quanto os filmes de Buñuel e os de Almodóvar. Depois do caso das charges, porém, ninguém mais se atreve a fazer o elogio da blasfêmia (do direito de exprimir o que as igrejas condenam como blasfêmia), embora até outro dia essa fosse uma das forças das artes e da literatura ocidentais.
Se amanhã eu resolver fundar uma igreja, o que me é assegurado pelo direito à liberdade de culto, e instituir que eu sou o profeta e que o meu nome não pode ser pronunciado em vão, ninguém, além dos fiéis, vai parar de me chamar pelo nome achando que comete uma blasfêmia. Mas só até a minha igreja congregar milhões de crentes ao redor do mundo, alguns prontos para matar quem abrir a boca para pronunciar o meu nome. Nesse caso, o que vai determinar o que é blasfêmia aos ímpios (aos que não estão nem aí para eu ser ou não o profeta) não é nenhum respeito pelo culto alheio, é o medo. Basta retroceder um pouco na história (e o Ocidente tem o exemplo inesquecível da Inquisição) para entender que, quando querem se impor como absolutas (e, em geral, é essa a sua vocação), as religiões recorrem ao medo.
Numa democracia laica, em princípio, da mesma forma que você deve respeitar e se submeter às regras impostas a todos os que entram numa igreja, numa mesquita, num templo budista ou numa sinagoga, não é obrigado a se submeter a nenhuma dessas regras fora dos âmbitos aos quais elas estão circunscritas, por lei e por direito. Além disso, nem é preciso lembrar, como outros já fizeram, que há uma diferença fundamental entre as palavras e os atos, entre o conflito de idéias e a ameaça à integridade física do indivíduo, entre ser acusado de blasfemar e ser agredido fisicamente ou até executado por ter blasfemado. Isso é o óbvio (ou era). Para além do óbvio, resta a reação do Ocidente, encurralado entre o medo e a má-fé.
Meios de comunicação como a CNN optaram por não reproduzir as charges, mesmo depois de elas já terem se tornado, por força das circunstâncias, fatos jornalísticos. Seria simplesmente humano se tivessem pelo menos a coragem de dizer: nós temos medo, nós não mostramos as charges, porque estamos com medo, em vez de apelar para algum subterfúgio, em nome da conciliação. A maior ameaça não vem de fora. Vem do próprio Ocidente. Daqueles que esperam há anos um pretexto para poder banir tudo o que os incomoda, sob o rótulo de blasfêmia. Nesse sentido, os fundamentalistas de todos os cultos encontraram um grande aliado no politicamente correto.
É verdade que uma justiça de dois pesos e duas medidas é prática regida pelo poder do mais forte, a favor das potências ocidentais, contra a periferia, os invadidos e os explorados, incluindo aí as populações de países de maioria muçulmana controlados por governos corruptos, autoritários e manipuladores, muitos deles aliados dessas mesmas potências. Muito da violência por conta das charges veio de uma reação deslocada e desfocada a esse estado de coisas. Mas é preciso não deslocar e desfocar também as reações no Ocidente. É preciso não começar a dar tiros nos pés. É melhor lutar contra a injustiça e a hipocrisia no Ocidente enquanto isso ainda é possível do que se curvar à evangelização do obscurantismo, ao qual muita gente parece pronta a se converter, de braços abertos ou com o rabo entre as pernas.


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