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BERNARDO CARVALHO
Com o rabo entre as pernas
A liberdade de expressão
garante, em princípio, até
ao mais completo idiota, o direito
de se manifestar. Você pode achar
que é o caso deste colunista. Você
pode se irritar, recorrer à Justiça
no caso de calúnia ou difamação,
mas censurar não está entre as
suas opções. E isso é fundamental.
É claro que há formas veladas e
indiretas (econômicas, por exemplo) de controle dessa liberdade
(o jornal pode publicar o idiota X
e não o Y, dependendo dos seus
interesses). Mas, se não viver num
país como a China, o idiota Y
sempre poderá recorrer ao seu
blog para manifestar as suas opiniões, por mais idiotas que sejam.
Entre as reações na mídia ocidental às manifestações violentas
contra as charges que representavam o profeta Muhammad, mais
de um escritor ou intelectual acusou o Ocidente de se servir da liberdade de expressão segundo
um princípio de dois pesos e duas
medidas. Curiosamente, um desses autores, ao mesmo tempo em
que condenava as charges, para
ele indefensáveis, defendia o direito incontestável à liberdade de
expressão de uma obra como "Os
Versos Satânicos", de Salman
Rushdie, por se tratar de literatura. Ou seja, a arte, por ser arte, deveria gozar de liberdade irrestrita
de expressão. Já a charge, por ser
charge, deveria estar submetida a
critérios mais relativos.
O raciocínio reproduzia um
preconceito comum -e uma
idiotia. É lógico que ninguém de
bom senso confunde uma charge
com literatura. Mas o que é literatura para mim pode não ser para
o autor do artigo. E é justamente
por causa disso que não cabe distinguir entre uma charge e uma
obra de arte, nem entre o que é de
mau ou de bom gosto, quando o
princípio é o da liberdade de expressão.
Você pode, por exemplo, considerar que a obra do Marquês de
Sade é ofensiva e de mau gosto,
ou que nem é literatura (e, de fato, mesmo na França do final dos
anos 50, o editor Jean-Jacques
Pauvert foi condenado judicialmente por publicá-la). Reconhecida como literatura, entretanto, a
obra de Sade depende tanto do
direito à blasfêmia quanto os filmes de Buñuel e os de Almodóvar. Depois do caso das charges,
porém, ninguém mais se atreve a
fazer o elogio da blasfêmia (do direito de exprimir o que as igrejas
condenam como blasfêmia), embora até outro dia essa fosse uma
das forças das artes e da literatura ocidentais.
Se amanhã eu resolver fundar
uma igreja, o que me é assegurado pelo direito à liberdade de culto, e instituir que eu sou o profeta
e que o meu nome não pode ser
pronunciado em vão, ninguém,
além dos fiéis, vai parar de me
chamar pelo nome achando que
comete uma blasfêmia. Mas só
até a minha igreja congregar milhões de crentes ao redor do mundo, alguns prontos para matar
quem abrir a boca para pronunciar o meu nome. Nesse caso, o
que vai determinar o que é blasfêmia aos ímpios (aos que não estão nem aí para eu ser ou não o
profeta) não é nenhum respeito
pelo culto alheio, é o medo. Basta
retroceder um pouco na história
(e o Ocidente tem o exemplo inesquecível da Inquisição) para entender que, quando querem se
impor como absolutas (e, em geral, é essa a sua vocação), as religiões recorrem ao medo.
Numa democracia laica, em
princípio, da mesma forma que
você deve respeitar e se submeter
às regras impostas a todos os que
entram numa igreja, numa mesquita, num templo budista ou numa sinagoga, não é obrigado a se
submeter a nenhuma dessas regras fora dos âmbitos aos quais
elas estão circunscritas, por lei e
por direito. Além disso, nem é preciso lembrar, como outros já fizeram, que há uma diferença fundamental entre as palavras e os
atos, entre o conflito de idéias e a
ameaça à integridade física do indivíduo, entre ser acusado de
blasfemar e ser agredido fisicamente ou até executado por ter
blasfemado. Isso é o óbvio (ou
era). Para além do óbvio, resta a
reação do Ocidente, encurralado
entre o medo e a má-fé.
Meios de comunicação como a
CNN optaram por não reproduzir
as charges, mesmo depois de elas
já terem se tornado, por força das
circunstâncias, fatos jornalísticos.
Seria simplesmente humano se tivessem pelo menos a coragem de
dizer: nós temos medo, nós não
mostramos as charges, porque estamos com medo, em vez de apelar para algum subterfúgio, em
nome da conciliação. A maior
ameaça não vem de fora. Vem do
próprio Ocidente. Daqueles que
esperam há anos um pretexto para poder banir tudo o que os incomoda, sob o rótulo de blasfêmia.
Nesse sentido, os fundamentalistas de todos os cultos encontraram um grande aliado no politicamente correto.
É verdade que uma justiça de
dois pesos e duas medidas é prática regida pelo poder do mais forte, a favor das potências ocidentais, contra a periferia, os invadidos e os explorados, incluindo aí
as populações de países de maioria muçulmana controlados por
governos corruptos, autoritários e
manipuladores, muitos deles
aliados dessas mesmas potências.
Muito da violência por conta das
charges veio de uma reação deslocada e desfocada a esse estado de
coisas. Mas é preciso não deslocar
e desfocar também as reações no
Ocidente. É preciso não começar
a dar tiros nos pés. É melhor lutar
contra a injustiça e a hipocrisia
no Ocidente enquanto isso ainda
é possível do que se curvar à evangelização do obscurantismo, ao
qual muita gente parece pronta a
se converter, de braços abertos ou
com o rabo entre as pernas.
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