|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A TROPICÁLIA REPRIMIDA
Ex-preso político, artista reflete sobre suposta "cumplicidade" entre torturadores e torturados
Duarte define Caetano e Gil como colegas "ricos"
DA REPORTAGEM LOCAL
A seguir, Rogério Duarte reflete
sobre o que define em "Tropicaos" como cumplicidade entre o
torturador e o torturado. E fala
criticamente sobre Caetano e Gil,
seus pares tropicalistas alçados ao
centro do poder musical e político.
(PAS)
Folha - Que cumplicidade você
atribui a torturado e torturador?
Rogério Duarte - Não há senão
torturados e torturadores. Todos
nós somos passíveis de sermos
torturados na medida em que não
somos inteiramente livres. Essa é
a tal cumplicidade entre o torturador e o torturado, a união promíscua entre a faca e a ferida. É como
no estupro, a mulher que fica com
vergonha e não conta.
Folha - Mas a alternativa a isso
não poderia significar a morte?
Duarte - Exatamente, mas qual é
a morte real? É a morte do corpo
ou a morte da alma? Ao escolher a
sobrevivência, você perdeu o sentido da sua existência. Você não
morre, mas se torna o que Fernando Pessoa chama de um cadáver adiado, porque nega sua alma.
Folha - Você se vê dessa forma?
Que peso a tortura teve para você?
Duarte - Aquele acontecimento
foi deflagrador, 68 foi o ano da
minha morte. Fui um assassinado. Mas quando falo no livro de
coisas anteriores, como as experiências de tortura no colégio interno, quero mostrar que não é
um incidente isolado que determina tudo. Uma pessoa masoquista, digamos, constrói uma situação de abandono amoroso que
tende a se repetir ciclicamente.
Resignei-me ao ostracismo,
mas agora assumo uma certa megalomania à qual havia renunciado. Disse que não, que eu era o cocô da mula do bandido do tropicalismo. Mas o que pensei e fiz
tem um sentido, vamos reivindicar esse sentido. Muito calei por
amor e conveniência, mas resolvi
não mais calar. Já não sou aquele
bom amigo que aplaude tudo.
Folha - Gil ser ministro da Cultura
do Brasil significa a tropicália no
poder ou um desvirtuamento?
Duarte - Tentamos pôr nos ombros de Gil e Caetano uma série de
desvios, mas hoje vejo muito mais
na minha própria omissão e na de
tantos outros a causa real dos desvios. Não posso cobrar deles o que
eu próprio não os ajudei a fazer.
Por outro lado, pode ser inveja,
mas ainda acho mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma
agulha do que um rico entrar no
reino dos céus. Se o cara virou glória nacional, não é culpa dele. Mas
não serei complacente com essa
canonização que é meio uma
morte. Talvez Gil represente a
possibilidade real, o que se pode
fazer. Mas o que queríamos não
era estar no PT. Eu queria era estar no poder nosso, com nossa
bandeira. Queria uma outra vida,
não apenas fazer parte desta.
Folha - Você era uma eminência
parda do tropicalismo?
Duarte - Não. Se havia algum poder em mim era exatamente pelo
fato de não ter poder. Mas, desculpe a imodéstia, acho que eu
sou o tropicalismo. Minha vida
foi a encarnação do tropicalismo,
que vivi como se fosse real, embora ele não tivesse acontecido. Fui
uma musa inspiradora, não uma
eminência. Virei um dissidente,
um renunciado. Vivo com nada,
não tenho dente nem roupa. Procuro viver de forma austera, para
não ter a fraqueza do conforto.
Folha - É renúncia, penitência?
Duarte - Não. Renuncio a quê? À
burrice, ao desprazer, à aparência
idiota. Não renuncio à alegria.
Continuo trabalhando, de forma
menos espetacular, mais profunda, mas com a mesma busca da
realização dessa tropicália reprimida. Essa é a verdadeira militância, não é fulano ficar toda hora
querendo aparecer. A obra é que
interessa, não o fulano.
Texto Anterior: A tropicália reprimida Próximo Texto: Dor e poesia sem pieguice dão tom do livro Índice
|