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São Paulo, segunda-feira, 28 de abril de 2003

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A TROPICÁLIA REPRIMIDA

Ex-preso político, artista reflete sobre suposta "cumplicidade" entre torturadores e torturados

Duarte define Caetano e Gil como colegas "ricos"

DA REPORTAGEM LOCAL

A seguir, Rogério Duarte reflete sobre o que define em "Tropicaos" como cumplicidade entre o torturador e o torturado. E fala criticamente sobre Caetano e Gil, seus pares tropicalistas alçados ao centro do poder musical e político. (PAS)
 

Folha - Que cumplicidade você atribui a torturado e torturador?
Rogério Duarte -
Não há senão torturados e torturadores. Todos nós somos passíveis de sermos torturados na medida em que não somos inteiramente livres. Essa é a tal cumplicidade entre o torturador e o torturado, a união promíscua entre a faca e a ferida. É como no estupro, a mulher que fica com vergonha e não conta.

Folha - Mas a alternativa a isso não poderia significar a morte?
Duarte -
Exatamente, mas qual é a morte real? É a morte do corpo ou a morte da alma? Ao escolher a sobrevivência, você perdeu o sentido da sua existência. Você não morre, mas se torna o que Fernando Pessoa chama de um cadáver adiado, porque nega sua alma.

Folha - Você se vê dessa forma? Que peso a tortura teve para você?
Duarte -
Aquele acontecimento foi deflagrador, 68 foi o ano da minha morte. Fui um assassinado. Mas quando falo no livro de coisas anteriores, como as experiências de tortura no colégio interno, quero mostrar que não é um incidente isolado que determina tudo. Uma pessoa masoquista, digamos, constrói uma situação de abandono amoroso que tende a se repetir ciclicamente.
Resignei-me ao ostracismo, mas agora assumo uma certa megalomania à qual havia renunciado. Disse que não, que eu era o cocô da mula do bandido do tropicalismo. Mas o que pensei e fiz tem um sentido, vamos reivindicar esse sentido. Muito calei por amor e conveniência, mas resolvi não mais calar. Já não sou aquele bom amigo que aplaude tudo.

Folha - Gil ser ministro da Cultura do Brasil significa a tropicália no poder ou um desvirtuamento?
Duarte -
Tentamos pôr nos ombros de Gil e Caetano uma série de desvios, mas hoje vejo muito mais na minha própria omissão e na de tantos outros a causa real dos desvios. Não posso cobrar deles o que eu próprio não os ajudei a fazer.
Por outro lado, pode ser inveja, mas ainda acho mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus. Se o cara virou glória nacional, não é culpa dele. Mas não serei complacente com essa canonização que é meio uma morte. Talvez Gil represente a possibilidade real, o que se pode fazer. Mas o que queríamos não era estar no PT. Eu queria era estar no poder nosso, com nossa bandeira. Queria uma outra vida, não apenas fazer parte desta.

Folha - Você era uma eminência parda do tropicalismo?
Duarte -
Não. Se havia algum poder em mim era exatamente pelo fato de não ter poder. Mas, desculpe a imodéstia, acho que eu sou o tropicalismo. Minha vida foi a encarnação do tropicalismo, que vivi como se fosse real, embora ele não tivesse acontecido. Fui uma musa inspiradora, não uma eminência. Virei um dissidente, um renunciado. Vivo com nada, não tenho dente nem roupa. Procuro viver de forma austera, para não ter a fraqueza do conforto.

Folha - É renúncia, penitência?
Duarte -
Não. Renuncio a quê? À burrice, ao desprazer, à aparência idiota. Não renuncio à alegria. Continuo trabalhando, de forma menos espetacular, mais profunda, mas com a mesma busca da realização dessa tropicália reprimida. Essa é a verdadeira militância, não é fulano ficar toda hora querendo aparecer. A obra é que interessa, não o fulano.


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