São Paulo, sábado, 28 de julho de 2007

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MANUEL DA COSTA PINTO

Catequese às avessas


Em "Tratado de Ateologia", o filósofo Michel Onfray usa retórica inquisitorial para pregar contra a religião


É POUCO provável que a ladainha de um pastor evangélico seja capaz de catequizar um materialista convicto. A recíproca é ainda mais verdadeira: argumentos racionais contra a irracionalidade da fé são incapazes de fazer um crente descrer.
Vem daí a curiosa situação do "Tratado de Ateologia", de Michel Onfray: o filósofo francês investe contra a religião numa retórica inflamada, à maneira dos libertinos do século 18 -mas, ao contrário destes (que falavam para cortesãos vigiados pela Igreja), prega para uma sociedade já laicizada.
Do outro lado do balcão -os devotos das três religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo)-, a reação é de indiferença. Lançado em 2005, esse livro recém-traduzido no Brasil vendeu cerca de 200 mil exemplares na França (o mais laico dos países); que se saiba, porém, não entrou no "Índex" da Igreja Romana nem sofreu nenhuma "fatwa" emitida por algum líder muçulmano.
Onfray escreve seu libelo à maneira de um Torquemada pagão, reduzindo a religião a uma "patologia mental". Na esteira de Nietzsche, ele afirma: "O terror diante do nada, a incapacidade de integrar a morte como um processo natural, inevitável, com o qual é preciso compor, diante do qual só a inteligência pode produzir efeitos, mas igualmente a negação, a ausência de sentido além daquele que damos, o absurdo a priori, esses são os feixes genealógicos do divino".
O resultado seria uma cultura animada pela pulsão de morte: "Ódio a todos os livros em nome de um único; ódio à vida; ódio à sexualidade, às mulheres e ao prazer", sacrifícios exigidos pelos monoteísmos para entronizar "a fé e a crença, a obediência, a submissão, o gosto pela morte e a paixão pelo além, o anjo assexuado e a castidade" -enfim, "a vida crucificada e o nada celebrado". A saída, formulada a partir do anúncio da "morte de Deus" por Nietzsche, em "A Gaia Ciência", seria criar uma ética pós-cristã, hedonista e imanente (daí o subtítulo do livro de Onfray, "Física da Metafísica").
Ele desconstrói os monoteísmos repisando seus sofismas e suas espúrias alianças históricas; convida-nos, por meio de uma sarcástica "reductio ad absurdum", a ver na doutrina cristã da transubstanciação uma "ontologia de padaria" e, na prática judaica da circuncisão, uma "guerra aos prepúcios" que criou uma religião de mutilados.
Contra a atual ética da caridade (um "cristianismo sem Deus" complacente com os fanatismos), propõe o resgate uma tradição de ateus que, paradoxalmente, começa no século 17 com o jesuíta português Cristóvão Ferreira e o abade francês Jean Meslier. O problema é que essa virulenta doutrina, a "ateologia", só encontra eco entre uma minoria ilhada entre os fiéis de Ratzinger e dos ideólogos da Guerra Santa -para os quais Onfray não é um apóstata, mas um alienígena.


TRATADO DE ATEOLOGIA
Autor: Michel Onfray
Tradutor: Monica Stahel
Editora: Martins Fontes
Quanto: R$ 39,80 (222 págs.)
Avaliação: bom



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