São Paulo, terça, 28 de julho de 1998

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Novo épico de Spielberg ignora episódio covarde

Reuters
Cena de "O resgate do Soldado Ryan", mais recente filme de Steven Spielberg, que estreou na sexta nos EUA e chega ao Brasil em setembro



"O Resgate do Soldado Ryan", que estréia em setembro no Brasil, conta saga triunfante do Exército norte-americano na Segunda Guerra e ignora lado sombrio da história


CHRIS OLIVER WILSON
LINUS GREGORIADIS

do "The Independent"

Para Lester Zook, 79, não será possível ver a última grande produção de Hollywood, "O Resgate do Soldado Ryan" (Saving Private Ryan), embora o filme -que estréia no Brasil em 11 de setembro- seja o tipo de conto de heroísmo de guerra tão amado por veteranos como ele. Zook acharia a experiência traumática, perturbadora. Ela o deixaria com raiva.
O filme de mais de US$ 100 milhões, dirigido por Steven Spielberg e estrelado por Tom Hanks, conta a saga triunfante de membros do norte-americano lidando com uma tragédia.
Um de seus generais acha dramático demais contar a uma mulher que três de seus filhos morreram e um quarto está desaparecido durante os avanços do Dia D da Segunda Guerra Mundial. A reação do general é mandar que Hanks e sua unidade encontrem o irmão sobrevivente, o soldado Ryan.
Para o público norte-americano, é uma história tranquilizadora. Não importa como, o filme diz a eles, a América não será derrubada, embora todas as chances estejam contra ela, embora pareça um ato final de loucura arriscar as vidas de muitos para salvar um.
É um tema que tem se repetido entre os norte-americanos, especialmente após a Guerra do Vietnã, que gerou uma onda de filmes de resgate de veteranos.
É também uma evidência de que os militares norte-americanos agiram até o fim com sua política de "único sobrevivente", que pregava que homens em serviço cujos irmãos haviam morrido em combate teriam de ser tirados da linha de fogo pelo bem de seus pais.
Mas Lester Zook sabe que por trás desse caso está uma história real que envergonhou as autoridades, levou a um imenso clamor público e à precipitação da criação da política de sobreviventes.
Zook, então um oficial raso na Marinha, era um dos cerca de 700 homens a bordo do navio de guerra Juneau na manhã de 13 de novembro de 1942, dois anos antes dos desembarques do Dia D.
Ele não consegue lembrar claramente o que aconteceu depois desse dia. O navio havia sido atingido por um torpedo japonês e estava naufragando. Outro torpedo o atingiu e ele começou a afundar muito rapidamente, levando apenas 16 segundos, ele lembra, para desaparecer nas águas.
"Eu afundei com o navio. Desisti e não fiz nada. Só me lembro da sensação da alta pressão nos meus ouvidos", contou Zook.
De alguma forma ele foi resgatado dos restos, passando através de uma fina camada de óleo e atingindo a superfície. Por sorte, um dos barcos salva-vidas do Juneau estava próximo. A bordo do navio estavam cinco irmãos, os Sullivan. Quatro -Francis, Albert, Madison e Joseph- estavam entre os 600 que afundaram com o navio.
Entre os 110 sobreviventes, estava o quinto, George, um amigo de Zook. "Eu me lembro dele, o irmão mais velho, nadando de barco em barco para procurar seus irmãos. Até que, de repente, foi atacado por um tubarão e comido."
Os homens esperaram e esperaram pela chegada de socorro. Acreditaram numa operação de resgate, mas a Marinha dos EUA decidiu que a ameaça dos submarinos japoneses na área era muito grande, e os navios foram orientados a dirigir com cuidado.
"Ficamos absolutamente chocados, pois ninguém apareceu para nos salvar. Os homens estavam morrendo em consequência de seus ferimentos ou sendo comidos por tubarões", lembra Zook.
Sete dias se passaram até que a Marinha achou seguro resgatar os homens à deriva perto da costa das Ilhas Salomão. Nesse meio tempo, cem homens morreram de sede, de fome ou engolidos por tubarões. Só dez sobreviveram.
Quando as notícias chegaram aos Estados Unidos, a imprensa viveu dias de furor. As ações da Marinha haviam sido péssimas o suficiente, mas a perda de cinco irmãos em um incidente enraiveceu e causou náuseas na nação.
A casa dos Sullivan, em Waterloo, Iowa, foi inundada de flores, tributos e cartas de condolências. Os militares perceberam que a decisão aparentemente lógica de evitar mais perdas ao colocar outro navio em risco parecia claramente um ato de fria covardia.
Mais que depressa, as Forças Armadas adotaram a política de "único sobrevivente" ou "dispensar em razão de dependência". É o acordo que aparece em "O Resgate do Soldado Ryan".
Diz Zook: "Houve muita discussão sobre o que poderia ser feito depois do naufrágio do Juneau, e os militares ficaram muito mais cuidadosos em mandar irmãos juntos para batalhas. Mais do que isso, a política de único sobrevivente permitia que o último irmão de uma família a sobreviver poderia ser dispensado até mesmo se eles estivessem servindo em setores separados das Forças Armadas."
A história dos irmãos Sullivan foi contada num filme feito apenas dois anos depois da morte deles, "The Fighting Sullivans", enquanto só no ano passado a Marinha dos Estados Unidos deu o nome deles a um navio, o USS Sullivans.
Apesar de sua raiva, Zook voltou para o serviço militar, chegando ao posto de tenente-comandante. Mas seu compromisso militar não o levará ao cinema para ver o épico de Spielberg. Para ele seria ir muito longe, seria o reconhecimento de um heroísmo ficcional gerado pela covardia da vida real.


Tradução Denise Bobadilha



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