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Os filmes de Fellini vão iluminar o fim de século
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
Ontem fui ver a versão restaurada de "Noites de Cabíria", de Fellini, aqui em Nova
York. E fui atirado ao passado,
em 1958. Lembro que saí do cinema (qual? o Alvorada, ali na
Raul Pompéia?) com a vida
mudada. Tive outras "revelações": quando vi o "Acossado",
em 60, quando vi o "Dr. Fantástico", em 64, tantas... Cheguei ofegante para uns amigos
comunas, que me disseram:
"Fellini? É um pequeno-burguês com uma visão lírica do
povo, sem consciência da luta
de classes". Caí para trás.
Estava eu errado ao gostar
das paisagens baldias de Roma, com aqueles seres perdidos
de amor, aquelas putinhas
feias na Via Appia se xingando? Estava eu errado por gostar, melhor, ficar maravilhado,
alado, com a música de Nino
Rota nos teatrinhos de variedades, com os doces e poéticos
cafajestes de lenço no pescoço
entre espaguetes? Estava eu errado por gostar da generosidade de Fellini, que amava a ridícula feiúra, a breguice endêmica dos populares, que tinha
a poética do "grotesco" carinhoso e democrático, naquela
pura linhagem carnavalizada
que vem desde Boccacio e Rabelais, trazendo o baixo-ventre, o sexo, os seios, as nádegas,
a santa burrice, o riso e o choro
desbragados, a grande cultura
cênica do medieval tardio casada com a simplicidade
neo-realista? Estava eu errado
por gostar deste cinema essencial?
Foi meu primeiro contato
com as "patrulhas ideológicas" antes de serem assim batizadas por Cacá Diegues num
célebre artigo defendendo "Xica da Silva" dos comunas sem
alma. E não era só Fellini que
seria "reacionário", segundo
as bestas quadradas de então;
John Ford também era considerado "de direita". Mas não
falemos dessas coisas tristes.
O fato é que eu fui ontem à
noite ver "Cabíria" e me lembrei do tempo maravilhoso
quando nós esperávamos o
ano todo para ver o "próximo
Fellini". A vida não era esta
coisa besta como hoje; havia
um motivo para viver: esperar
o Fellini. Cada filme trazia um
consolo para o mundo inclemente. Fellini trazia amor por
coisas que nós criticávamos. A
estupidez crassa do povo? Fellini transformava isso em doçura. A feiúra dos gordos deformados? Fellini dava-lhes a
graça e o "sex appeal" renascentista das grandes bundas. O
ridículo dos burgueses, a grossura dos gigolôs, a esperança
das prostitutas, até mesmo a
humanidade dos canalhas estava ali nos filmes.
Fellini foi chamado de "alienado" porque foi além da secura dos neo-realistas radicais,
mesmo de gênios como Rosselini e de outros menos profundos
como De Sicca, que chegou a
cair no suave oportunismo de
"Milagre em Milão", com os
miseráveis subindo aos céus,
para gáudio de Hollywood.
Ontem, saí do cinema e Nova
York me pareceu "antiga", em
vez de possuída desta luz cruel
do fim de século, feito de velocidade, amores desumanos, cinismo global. "Noites de Cabíria" (que está estreando no
Brasil também) trouxe de volta
um mundo de delicadeza que
não pode acabar, tão ameaçado pela americanização bruta.
Saí com a certeza de que, da
Europa, vai ter de surgir alguma reação a esta escrota transformação dos homens em fregueses, de espectadores em otários, em passivos objetos de
manipulação de produtores. A
Europa terá de resistir a esta
onda terrível de bruta superficialidade do cinema americano atual. E Fellini é a prova
dos nove.
Fellini resistiu sozinho à invasão da indústria cultural
americana com a única vingança profunda: o sucesso. Sucesso comercial mundial, contrariando todas as regras duras dos produtores boçais; sem
ação frenética, sem historinha
óbvia, sem astros carismáticos,
sem carros explodindo, sem tiros e porradas, Fellini estourou
bilheterias recontando a mesma história de sua pequena cidade de Rimini, sua aldeia
universal. Fellini contou tudo
sem o "campo" e "contracampo" obrigatórios dos gringos, sem as viradas dramáticas, sem "close-ups" glamourosos, sem diálogos óbvios e explicativos, sem os finais felizes
e outras bobagens.
Fellini filmou de longe, fez
sua câmera flutuar em travelings líricos, demorou a cortar
com "tempos mortos" cheios
de vida, falsificou a realidade,
fez navios de papel, mares de
plástico, Romas em estúdio,
amores risíveis, heróis ridículos.
Fellini também atravessou a
arte moderna toda sem nunca
cair na armadilha de sua
"melancolia obrigatória".
Fellini nunca propôs soluções,
ideologias de salvação; ele cruzou o século das pomposidades
herméticas com personagens
óbvios, descaradamente humorísticos, quando o "politicamente correto" era o hermetismo desesperado, que era
considerado o antídoto burro
europeu contra a escrota obviedade americana.
Fellini comunicou-se com o
espectador comum quando o
"certo" era equivocá-lo, desagradá-lo, traí-lo. Fellini se recusou ao gueto babaca dos intelectuais rancorosos; ele transou numa boa com o "princípio", o "meio", mas não necessariamente com o "fim".
Fellini veio da tradição barroca do passado italiano, ligou-se à cultura dos circos e
dos teatrinhos burlescos, a
poética doce dos excluídos, tudo isso enquanto os abstracionismos e a arte "engajada"
rugiam lá fora.
Fellini nunca fez um musical, mas era como se houvesse
feito. Ele amava os filmes dançantes americanos, talvez o cinema "par excellance", a
grande invenção de Hollywood, de Busby Berkelley a
Bob Fosse.
Diziam que Fellini preferia a
mentira à verdade. Ele mesmo
disse: "Não vejo linha divisória
entre imaginação e realidade.
Num certo sentido, tudo é realista". Parece Nelson Rodrigues
falando. E a verdade é a seguinte: onde estão hoje as tais
certezas dos que criticaram
Fellini, suas ideologias sem dúvidas, suas análises sem generosidade, seus conceitualismos
arrogantes, suas melancolias
pseudoprofundas, onde estão?
Naufragaram no fim do século,
enquanto as personagens de
Fellini estão por aí, em cada
esquina do mundo, como a putinha chapliniana Cabíria,
dançando mambo na Via Appia. Só os barrocos e os vitais
ficaram de pé, à beira do novo
milênio, junto com Fellini: Picasso, Buñuel, Renoir, Chaplin, Fred Astaire e outros geniais criadores alegres. Só nos
resta isso: a vida.
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