São Paulo, terça, 28 de julho de 1998

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Os filmes de Fellini vão iluminar o fim de século

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

Ontem fui ver a versão restaurada de "Noites de Cabíria", de Fellini, aqui em Nova York. E fui atirado ao passado, em 1958. Lembro que saí do cinema (qual? o Alvorada, ali na Raul Pompéia?) com a vida mudada. Tive outras "revelações": quando vi o "Acossado", em 60, quando vi o "Dr. Fantástico", em 64, tantas... Cheguei ofegante para uns amigos comunas, que me disseram: "Fellini? É um pequeno-burguês com uma visão lírica do povo, sem consciência da luta de classes". Caí para trás.
Estava eu errado ao gostar das paisagens baldias de Roma, com aqueles seres perdidos de amor, aquelas putinhas feias na Via Appia se xingando? Estava eu errado por gostar, melhor, ficar maravilhado, alado, com a música de Nino Rota nos teatrinhos de variedades, com os doces e poéticos cafajestes de lenço no pescoço entre espaguetes? Estava eu errado por gostar da generosidade de Fellini, que amava a ridícula feiúra, a breguice endêmica dos populares, que tinha a poética do "grotesco" carinhoso e democrático, naquela pura linhagem carnavalizada que vem desde Boccacio e Rabelais, trazendo o baixo-ventre, o sexo, os seios, as nádegas, a santa burrice, o riso e o choro desbragados, a grande cultura cênica do medieval tardio casada com a simplicidade neo-realista? Estava eu errado por gostar deste cinema essencial?
Foi meu primeiro contato com as "patrulhas ideológicas" antes de serem assim batizadas por Cacá Diegues num célebre artigo defendendo "Xica da Silva" dos comunas sem alma. E não era só Fellini que seria "reacionário", segundo as bestas quadradas de então; John Ford também era considerado "de direita". Mas não falemos dessas coisas tristes.
O fato é que eu fui ontem à noite ver "Cabíria" e me lembrei do tempo maravilhoso quando nós esperávamos o ano todo para ver o "próximo Fellini". A vida não era esta coisa besta como hoje; havia um motivo para viver: esperar o Fellini. Cada filme trazia um consolo para o mundo inclemente. Fellini trazia amor por coisas que nós criticávamos. A estupidez crassa do povo? Fellini transformava isso em doçura. A feiúra dos gordos deformados? Fellini dava-lhes a graça e o "sex appeal" renascentista das grandes bundas. O ridículo dos burgueses, a grossura dos gigolôs, a esperança das prostitutas, até mesmo a humanidade dos canalhas estava ali nos filmes.
Fellini foi chamado de "alienado" porque foi além da secura dos neo-realistas radicais, mesmo de gênios como Rosselini e de outros menos profundos como De Sicca, que chegou a cair no suave oportunismo de "Milagre em Milão", com os miseráveis subindo aos céus, para gáudio de Hollywood.
Ontem, saí do cinema e Nova York me pareceu "antiga", em vez de possuída desta luz cruel do fim de século, feito de velocidade, amores desumanos, cinismo global. "Noites de Cabíria" (que está estreando no Brasil também) trouxe de volta um mundo de delicadeza que não pode acabar, tão ameaçado pela americanização bruta.
Saí com a certeza de que, da Europa, vai ter de surgir alguma reação a esta escrota transformação dos homens em fregueses, de espectadores em otários, em passivos objetos de manipulação de produtores. A Europa terá de resistir a esta onda terrível de bruta superficialidade do cinema americano atual. E Fellini é a prova dos nove.
Fellini resistiu sozinho à invasão da indústria cultural americana com a única vingança profunda: o sucesso. Sucesso comercial mundial, contrariando todas as regras duras dos produtores boçais; sem ação frenética, sem historinha óbvia, sem astros carismáticos, sem carros explodindo, sem tiros e porradas, Fellini estourou bilheterias recontando a mesma história de sua pequena cidade de Rimini, sua aldeia universal. Fellini contou tudo sem o "campo" e "contracampo" obrigatórios dos gringos, sem as viradas dramáticas, sem "close-ups" glamourosos, sem diálogos óbvios e explicativos, sem os finais felizes e outras bobagens.
Fellini filmou de longe, fez sua câmera flutuar em travelings líricos, demorou a cortar com "tempos mortos" cheios de vida, falsificou a realidade, fez navios de papel, mares de plástico, Romas em estúdio, amores risíveis, heróis ridículos.
Fellini também atravessou a arte moderna toda sem nunca cair na armadilha de sua "melancolia obrigatória". Fellini nunca propôs soluções, ideologias de salvação; ele cruzou o século das pomposidades herméticas com personagens óbvios, descaradamente humorísticos, quando o "politicamente correto" era o hermetismo desesperado, que era considerado o antídoto burro europeu contra a escrota obviedade americana.
Fellini comunicou-se com o espectador comum quando o "certo" era equivocá-lo, desagradá-lo, traí-lo. Fellini se recusou ao gueto babaca dos intelectuais rancorosos; ele transou numa boa com o "princípio", o "meio", mas não necessariamente com o "fim". Fellini veio da tradição barroca do passado italiano, ligou-se à cultura dos circos e dos teatrinhos burlescos, a poética doce dos excluídos, tudo isso enquanto os abstracionismos e a arte "engajada" rugiam lá fora.
Fellini nunca fez um musical, mas era como se houvesse feito. Ele amava os filmes dançantes americanos, talvez o cinema "par excellance", a grande invenção de Hollywood, de Busby Berkelley a Bob Fosse.
Diziam que Fellini preferia a mentira à verdade. Ele mesmo disse: "Não vejo linha divisória entre imaginação e realidade. Num certo sentido, tudo é realista". Parece Nelson Rodrigues falando. E a verdade é a seguinte: onde estão hoje as tais certezas dos que criticaram Fellini, suas ideologias sem dúvidas, suas análises sem generosidade, seus conceitualismos arrogantes, suas melancolias pseudoprofundas, onde estão? Naufragaram no fim do século, enquanto as personagens de Fellini estão por aí, em cada esquina do mundo, como a putinha chapliniana Cabíria, dançando mambo na Via Appia. Só os barrocos e os vitais ficaram de pé, à beira do novo milênio, junto com Fellini: Picasso, Buñuel, Renoir, Chaplin, Fred Astaire e outros geniais criadores alegres. Só nos resta isso: a vida.



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