São Paulo, quarta-feira, 28 de agosto de 2002

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MARCELO COELHO

Os candidatos e a luta pelo melhor boletim

Acho exagerado o barulho que andam fazendo em torno do currículo escolar de Ciro Gomes. Ele disse que sempre estudou em escola pública. Não! Escândalo! Calem esse farsante! Ele omite que estudou dois ou três anos num colégio de padres, aliás frequentado pela elite de Sobral, no Ceará...
Se as únicas mentiras de um candidato à Presidência fossem desse tipo, estaríamos muito bem de vida. Principalmente porque mentir sobre o colégio que frequentou ou deixou de frequentar é o tipo de coisa que não traz vantagem muito clara para ninguém. Ou será que traz?
Posso estar delirando, mas tento entender a lógica do episódio.
A vantagem para Ciro, ao enumerar de forma inexata os cursos que fez, não está em demonstrar o declínio do ensino público do país. Quando fala sobre o assunto, Ciro está na verdade aproveitando a deixa para mostrar o quanto estudou, que é formado em economia etc. -o que é uma forma sutil de se contrapor, é claro, à ausência de formação escolar de Lula.
O tema deixou de ser discutido diretamente, mas talvez esteja permeando todo o debate eleitoral. Depois de oito anos de um regime que poderíamos chamar de neoliberalismo esclarecido, com um sociólogo de fama internacional fazendo as vezes de rei-filósofo, é provável que candidatos e eleitores se sintam um tanto aflitos para provar conhecimentos e tirar boas notas.
O modelo do boletim tomou conta do nosso cotidiano. Basta pensar nessas cotações que os bancos de investimento usam para classificar os países em desenvolvimento, com seus B+, A- etc. E sempre há algum economista para dizer que todos os nossos males provêm do fato de não termos feito direito a nossa lição de casa.
Os candidatos recebem uma espécie de boletim semanal, que são as pesquisas de opinião. Desse ponto de vista, é sintomático que tenhamos um candidato -justamente o que vai pior nas notas- chamado Garotinho. Ele nem parece se importar tanto com isso. Para mim, Garotinho evoca aquela figura -acho que em toda classe do ginásio existia uma- do "falso bom aluno", o gordinho de cabelo arrumado, sempre respeitoso com a professora, capaz entretanto dos mais extremados disparates na prova oral.
Sabatinas, aliás, têm sido a tônica desta campanha. Mais do que nunca, os candidatos estão empenhados em mostrar números e detalhar propostas para governar o país. Sempre se cobrou isso dos políticos, e desta vez é preciso admitir que o debate se aperfeiçoou.
Sim, aperfeiçoou-se. Mas que debate? Tudo vai rapidamente do genérico para o específico, sem que o eleitor tenha de fato o que escolher.
Exemplo: pergunta-se ao candidato quais as suas propostas para combater a violência. Naturalmente, há um espaço para as generalidades, do tipo "violência se combate com educação, emprego etc." Logo em seguida, entretanto, os candidatos passam a dizer -não sei bem, mas vai aqui o exemplo- quantos presídios de segurança máxima irão construir, quanto é preciso gastar na vigilância das fronteiras com a Colômbia e quantos postos de controle per capita são necessários para que...
Acho difícil que o eleitor acompanhe esse tipo de discurso. Eu, pelo menos, esqueço tudo. O objetivo, por certo, é menos o de esclarecer o público sobre o que pretende fazer "concretamente" e muito mais o de mostrar que o candidato é estudioso, entende do problema etc.
Não será isso uma mistificação? Do candidato "mais preparado" ao "menos preparado", uma ótica tecnicista parece dominar a campanha eleitoral. Todos, a meu ver, entram nesse jogo, porque cada candidatura esmaeceu muito o seu conteúdo político.
Cada candidato quer se mostrar mais "neutro" do que o outro. O jogo das alianças e coalizões descaracteriza a mensagem de cada postulante; direita, esquerda, oposição, governo, liberalismo, estatismo, o principal é fugir de ser identificado com o que quer que seja; até com o próprio partido.
Resta, assim, a comparação entre as qualidades individuais. Num país que nunca viu tanto desemprego, os candidatos passam como que por uma entrevista no departamento de pessoal. Currículo, escolaridade, experiência anterior... mas também há o psicotécnico: capacidade de negociação, bom humor, maturidade...
Qualidades muito importantes num presidente da República, não há dúvida. Mas é também importante saber quem o sustenta, quem ele está representando, o que significa a sua candidatura. Isso é mais concreto do que o número de hectares que serão destinados à reforma agrária ou a porcentagem do PIB que quer aplicar na pesquisa nuclear.
Nestes últimos oito anos, vimos o presidente Fernando Henrique ganhando títulos honoris causa em tudo quanto é universidade. Filas gigantescas se formam cada vez que se anuncia algum curso gratuito de qualificação de mão-de-obra. Reciclagens, provões, Enens, sabatinas, currículos pela internet: a educação se torna uma prioridade, o que é bom.
Mas também se torna motivo para uma coisa meio mística, meio ideológica: se você está desempregado, a culpa é sua, amigo, que não se reciclou. Bem, analisemos de qualquer modo o seu histórico escolar... suas notas de química, de geografia e de português nunca foram grande coisa... Ah, mas que ótimas notas em disciplina e comportamento! Vamos ver se tem direito a mais uma chance.



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