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MARCELO COELHO
Os candidatos e a luta pelo melhor boletim
Acho exagerado o barulho que andam fazendo em
torno do currículo escolar de Ciro
Gomes. Ele disse que sempre estudou em escola pública. Não! Escândalo! Calem esse farsante! Ele
omite que estudou dois ou três
anos num colégio de padres, aliás
frequentado pela elite de Sobral,
no Ceará...
Se as únicas mentiras de um
candidato à Presidência fossem
desse tipo, estaríamos muito bem
de vida. Principalmente porque
mentir sobre o colégio que frequentou ou deixou de frequentar
é o tipo de coisa que não traz vantagem muito clara para ninguém.
Ou será que traz?
Posso estar delirando, mas tento entender a lógica do episódio.
A vantagem para Ciro, ao enumerar de forma inexata os cursos
que fez, não está em demonstrar o
declínio do ensino público do
país. Quando fala sobre o assunto, Ciro está na verdade aproveitando a deixa para mostrar o
quanto estudou, que é formado
em economia etc. -o que é uma
forma sutil de se contrapor, é claro, à ausência de formação escolar de Lula.
O tema deixou de ser discutido
diretamente, mas talvez esteja
permeando todo o debate eleitoral. Depois de oito anos de um regime que poderíamos chamar de
neoliberalismo esclarecido, com
um sociólogo de fama internacional fazendo as vezes de rei-filósofo, é provável que candidatos e
eleitores se sintam um tanto aflitos para provar conhecimentos e
tirar boas notas.
O modelo do boletim tomou
conta do nosso cotidiano. Basta
pensar nessas cotações que os
bancos de investimento usam para classificar os países em desenvolvimento, com seus B+, A- etc.
E sempre há algum economista
para dizer que todos os nossos
males provêm do fato de não termos feito direito a nossa lição de
casa.
Os candidatos recebem uma espécie de boletim semanal, que são
as pesquisas de opinião. Desse
ponto de vista, é sintomático que
tenhamos um candidato -justamente o que vai pior nas notas-
chamado Garotinho. Ele nem parece se importar tanto com isso.
Para mim, Garotinho evoca
aquela figura -acho que em toda classe do ginásio existia
uma- do "falso bom aluno", o
gordinho de cabelo arrumado,
sempre respeitoso com a professora, capaz entretanto dos mais extremados disparates na prova
oral.
Sabatinas, aliás, têm sido a tônica desta campanha. Mais do
que nunca, os candidatos estão
empenhados em mostrar números e detalhar propostas para governar o país. Sempre se cobrou
isso dos políticos, e desta vez é preciso admitir que o debate se aperfeiçoou.
Sim, aperfeiçoou-se. Mas que
debate? Tudo vai rapidamente do
genérico para o específico, sem
que o eleitor tenha de fato o que
escolher.
Exemplo: pergunta-se ao candidato quais as suas propostas para
combater a violência. Naturalmente, há um espaço para as generalidades, do tipo "violência se
combate com educação, emprego
etc." Logo em seguida, entretanto,
os candidatos passam a dizer
-não sei bem, mas vai aqui o
exemplo- quantos presídios de
segurança máxima irão construir, quanto é preciso gastar na
vigilância das fronteiras com a
Colômbia e quantos postos de
controle per capita são necessários para que...
Acho difícil que o eleitor acompanhe esse tipo de discurso. Eu,
pelo menos, esqueço tudo. O objetivo, por certo, é menos o de esclarecer o público sobre o que pretende fazer "concretamente" e muito
mais o de mostrar que o candidato é estudioso, entende do problema etc.
Não será isso uma mistificação?
Do candidato "mais preparado"
ao "menos preparado", uma ótica
tecnicista parece dominar a campanha eleitoral. Todos, a meu ver,
entram nesse jogo, porque cada
candidatura esmaeceu muito o
seu conteúdo político.
Cada candidato quer se mostrar mais "neutro" do que o outro. O jogo das alianças e coalizões descaracteriza a mensagem
de cada postulante; direita, esquerda, oposição, governo, liberalismo, estatismo, o principal é fugir de ser identificado com o que
quer que seja; até com o próprio
partido.
Resta, assim, a comparação entre as qualidades individuais.
Num país que nunca viu tanto
desemprego, os candidatos passam como que por uma entrevista
no departamento de pessoal. Currículo, escolaridade, experiência
anterior... mas também há o psicotécnico: capacidade de negociação, bom humor, maturidade...
Qualidades muito importantes
num presidente da República,
não há dúvida. Mas é também
importante saber quem o sustenta, quem ele está representando, o
que significa a sua candidatura.
Isso é mais concreto do que o número de hectares que serão destinados à reforma agrária ou a porcentagem do PIB que quer aplicar
na pesquisa nuclear.
Nestes últimos oito anos, vimos
o presidente Fernando Henrique
ganhando títulos honoris causa
em tudo quanto é universidade.
Filas gigantescas se formam cada
vez que se anuncia algum curso
gratuito de qualificação de mão-de-obra. Reciclagens, provões,
Enens, sabatinas, currículos pela
internet: a educação se torna uma
prioridade, o que é bom.
Mas também se torna motivo
para uma coisa meio mística,
meio ideológica: se você está desempregado, a culpa é sua, amigo,
que não se reciclou. Bem, analisemos de qualquer modo o seu histórico escolar... suas notas de química, de geografia e de português
nunca foram grande coisa... Ah,
mas que ótimas notas em disciplina e comportamento! Vamos ver
se tem direito a mais uma chance.
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