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LIVROS - LANÇAMENTOS
"As Horas" é "Mrs. Dalloway" dos anos 90
SHEILA GRECCO
especial para a Folha
A literatura se alimenta da literatura.
Consciente das premissas antropofágicas da ficção moderna, o escritor
norte-americano Michael Cunningham, em seu novo romance,
"As Horas", presta tributo a Virginia Woolf (1882-1941).
A mais radical experimentalista
da ficção inglesa é homenageada
pelo escritor em um jogo de referências à obra-prima "Mrs. Dalloway", à luz dos problemas dos
anos 90.
A homenagem do autor está
tanto no estilo intimista, próprio
de Woolf, quanto ao colocá-la como uma das protagonistas do livro, que narra um dia na vida de
três mulheres de diferentes gerações.
Desde a sua publicação nos
EUA, o romance vem sendo entusiasticamente recebido pela crítica, o que lhe valeu dois importantes prêmios, o Pulitzer e o PEN/
Faulkner deste ano. Agora a obra
ganha tradução para o português.
Virginia Woolf vive no subúrbio de Londres em 1923 preparando os manuscritos de seu romance "Mrs. Dalloway" -ainda
nessa fase intitulado "The Hours"
(As Horas); Laura Brown é uma
deprimida dona-de-casa em Los
Angeles, lendo "Mrs. Dalloway"
em 1959, e Clarissa Vaughan, uma
editora de livros que vive nos dias
de hoje na West 10th Street, em
Greenwich Village.
Mrs. Woolf, Mrs. Laura e Mrs.
Clarissa são, respectivamente, as
três faces de "Mrs. Dalloway": a
que escreve, a que lê e a que vive.
O livro começa com um prólogo
no qual se narra o suicídio de Virginia Woolf, quando, aos 59 anos,
se afogou no rio Ouse, Sussex, no
sudeste da Inglaterra, onde então
morava.
Virginia escreve duas cartas de
despedida. Uma para sua irmã,
Vanessa Bell. A outra para seu
marido, Leonard Woolf. Põe duas
grandes pedras no bolso e mergulha nas águas caudalosas.
O começo abrupto, frio e estranho só ganha razão de ser pela
coerência interna que avança gradativamente.
A história toma pulso a partir
do quarto episódio, quando estão
bem delineadas as vidas paralelas
do romance.
A história de Clarissa é a peça
central. Seu apelido, Mrs. Dalloway, foi dado por seu amigo e ex-amante Richard, um atormentado poeta homossexual, aidético
em fase terminal. Como no romance original de Woolf, Clarissa
sai para comprar flores, perambulando pelas ruas da cidade, reflete sobre sua vida, reencontra
conhecidos e esforça-se para que
a festa em homenagem ao prêmio
literário recebido por Richard seja
perfeita.
Ao contrário da mera sugestão
de um amor de infância no romance woolfiano, Clarissa e Sally
vivem juntas e felizes há 18 anos.
A jovem Julia, filha de Clarissa,
cujo pai é "nada mais do que uma
proveta numerada", é preocupação para a mãe por se relacionar
com uma amiga feminista.
O livro não traz de volta as circunstâncias políticas de ""Mrs.
Dalloway", ecos da Primeira
Guerra Mundial, através das alucinações de um ex-combatente.
Porém, a percepção visionária, a
um passo da loucura do poeta Richard, e a aproximação das angústias vividas por uma família
tradicional -no caso de Laura-
e de uma família pós-moderna
-Clarissa e Sally- reintroduzem a história no livro de Cunningham.
Não a história dos grandes
eventos, mas a dos pequenos fatos
que reverberam e se eternizam no
miúdo -flores, entre a renovação e a decrepitude, olhares, beijos furtivos, festas e frivolidades,
decepções e descobertas. Há uma
virtual imobilização com a concentração no detalhe prosaico, no
mergulho vertiginoso no inconsciente. Cada cena é decisiva. Casais homossexuais, jovens fúteis,
quarentões, ex-militantes que
aderiram às glórias do consumo,
donas-de-casa sufocadas, liberdade ameaçada pela iminência da
Aids, gerações que poderiam ter
sido e que não foram. Esse painel
cruel dos anos 90 parece um prato
cheio para certa crítica engajada
que valoriza questões de raça, gênero e classe nos EUA.
Mas o valor do livro não está na
sua boa intenção. Dela o autor se
valeu nos romances anteriores, ao
retratar os desajustados -com
certa proeza em "Uma Casa no
Fim do Mundo" (1990), de maneira um tanto desigual em "Laços de Sangue" (1995) e agora
com maturidade suficiente para
agradar a conteudistas e a formalistas.
A insatisfação une as personagens. Virgínia, cansada e fraca,
aborrecida com a chegada antecipada de sua irmã e a impossibilidade de continuar escrevendo.
Laura e sua sufocante vida caseira, sua obsessão não só por atingir
a perfeição nas tarefas domésticas
-na preparação da festa de aniversário de seu marido- como
também pela leitura da obra de
Woolf, que para ela é a catarse
-ela chega ao ponto de deixar o
filho com uma babá e vai a um hotel simplesmente para ler. E a própria Clarissa e suas dualidades: vida e arte, o testemunho do suicídio do amigo e a revisão de escolhas. Mas, diferentemente de
"Mrs. Dalloway", para surpresa
do leitor, as três histórias convergem e deixam uma nota de esperança.
Mais do que frêmito, a obra de
Cunningham é um mergulho, seja em pesquisa, seja em estilo, que
faz manter viva Virginia Woolf.
Não é necessário ser um devoto
da escritora inglesa para apreciar
o pequeno livro de Cunningham.
Mas, como escreveu o próprio autor recentemente no "The New
York Times Book Review", as conexões entre os dois livros se tornam tão mais "ricas, penetrantes
e originais que não ler "Mrs. Dalloway" depois de ter lido "As Horas" é como deixar um concerto
justamente no momento em que
ele está no seu auge".
"As Horas" é um livro que tem
vida própria, mas que estimula a
(re)ler Virginia Woolf e a refletir
sobre a porção Mrs. Dalloway que
existe em cada um de nós.
Livro: As Horas
Autor: Michael Cunningham
Tradução: Beth Vieira
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 21,00 (175 págs.)
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