São Paulo, Sábado, 28 de Agosto de 1999
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RESENHA DA SEMANA
Roleta-russa

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

O que é "O Herói do Nosso Tempo"? Um dos maiores clássicos do romantismo russo. O romance pioneiro de Mikhail Liérmontov (1814-1841), poeta herdeiro de Púchkin e de Byron e precursor, assim como Gogol, de Dostoiévski e do realismo psicológico na prosa.
É a obra mais aclamada de um escritor que vai morrer jovem, em circunstâncias suspeitas, num duelo do qual não queria participar, deixando um punhado de poemas célebres e dois romances inacabados.
Quem é "O Herói do Nosso Tempo"? É um sujeito desencantado com a Rússia autocrática do czar Nicolai 1º, desiludido diante da hipocrisia das convenções do seu tempo e de mitos como o amor romântico, que ele procura desmistificar com um cinismo ora fleumático ora ferino, uma misoginia desembestada e um calculismo que não exclui laivos contraditórios de compaixão.
É, enfim, o anti-herói e o anti-romântico por excelência, cuja personalidade complexa e cindida só poderá ser vislumbrada pela composição fragmentária de diferentes pontos de vista, do relato de quem o conheceu e de trechos do seu próprio diário -o romance é formado por cinco "contos", três deles narrados pelo próprio "herói", Pietchórin, um oficial russo no Cáucaso.
O que diz o "herói" sobre si mesmo? "Desde que me livrei da tutela dos mais velhos, entreguei-me loucamente a todos os prazeres que o dinheiro podia me possibilitar, (...) me lancei à alta sociedade e logo a sociedade também me provocou ojeriza; apaixonava-me pelas mulheres belas (...) e elas também me amavam, mas o seu amor apenas excitava a minha imaginação e o meu amor-próprio (...). Passei a ler, a estudar, e as ciências também me saturaram; (...) as pessoas mais felizes são as ignorantes, e a fama é uma questão de sorte, bastando ao indivíduo ser astuto para alcançá-la. E então senti tédio."
Ou: "(...) Não tenho aptidão para amizades. Entre dois amigos, um sempre é escravo do outro, embora (...) nenhum dos dois o reconheça; ser escravo é coisa que não consigo, e mandar, neste caso, é um trabalho enfadonho porque além de tudo ainda é preciso enganar; além do mais tenho um criado e dinheiro!".
Ou ainda: "(...) A palavra casamento exerce sobre mim uma espécie de poder mágico: por mais apaixonadamente que ame uma mulher, é só me dar a impressão de que devo me casar com ela -e adeus amor! Meu coração se transforma em pedra, e não há nada que lhe restitua o calor. (...) Há pessoas que têm horror a baratas, aranhas, ratos...".
"O Herói do Nosso Tempo" é o retrato desse herói enfadado mas também desse tempo em que as dissidências foram esmagadas e só resta o imobilismo geral ou a exibição cínica do desinteresse, arriscando a vida, por exemplo, numa roleta-russa.
Escaldado por um regime que fazia uso corrente de perseguições e da censura, e após ter sido exilado pelo czar no Cáucaso, em 1837, como punição por ter escrito um poema em que acusava a corte pela morte de Púchkin, Liérmontov deve ter achado de bom-tom acrescentar ao seu romance um prefácio de esclarecimento sobre a ironia, quando o publicou três anos depois, em 1840.
"O nosso público é ainda tão jovem e ingênuo que não entende uma fábula sem a moral da história no final. (...) Não percebe ironias; é simplesmente mal-educado. (...) A cultura moderna inventou uma arma (...) quase invisível porém mortal, que, sob o disfarce da lisonja, desfecha golpes certeiros e irrebatíveis. Nosso público parece aquele provinciano que, após ouvir a conversa de dois diplomatas pertencentes a cortes hostis, fica certo de que ambos estão enganando os seus governos em benefício de uma amizade mútua mais que terna."
Herdeiro assumido do "demonismo" de Byron na poesia, Liérmontov vai desmontar, na prosa, toda ingenuidade romântica (bucolismo, exotismo, paixões impossíveis etc.), abrindo caminho para um realismo implacavelmente irônico.
O Cáucaso do romance (e do exílio do escritor), região que na época era chamada pelo czar de "Sibéria quente", com suas estações de águas frequentadas por nobres moscovitas e paisagens selvagens povoadas por bandidos e civilizações exóticas e indóceis (tchetchênos etc.) que ainda hoje se revoltam contra o domínio russo, é o próprio território dessa ambiguidade.
A certa altura, o "herói" grita desesperado: "Leve-me a algum lugar, bandido, nem que seja ao inferno, contanto que seja algum lugar!". O Cáucaso de Liérmontov é um lugar nenhum, o desconhecido a ser desbravado, o território do humor, do escracho e da ironia, essa "arma invisível", possibilidade infinita de segundos sentidos, a antiimagem da Rússia czarista e o passo pioneiro para uma nova literatura.


Avaliação:     

Livro: O Herói do Nosso Tempo
Autor: Mikhail Liérmontov
Tradução: Paulo Bezerra
Lançamento: Martins Fontes
Quanto: R$ 27,50 (224 págs.)


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