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RESENHA DA SEMANA
Roleta-russa
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
O que é "O Herói do Nosso
Tempo"? Um dos maiores clássicos do romantismo russo. O
romance pioneiro de Mikhail
Liérmontov (1814-1841), poeta
herdeiro de Púchkin e de
Byron e precursor, assim como
Gogol, de Dostoiévski e do realismo psicológico na prosa.
É a obra mais aclamada de
um escritor que vai morrer jovem, em circunstâncias suspeitas, num duelo do qual não
queria participar, deixando um
punhado de poemas célebres e
dois romances inacabados.
Quem é "O Herói do Nosso
Tempo"? É um sujeito desencantado com a Rússia autocrática do czar Nicolai 1º, desiludido diante da hipocrisia das
convenções do seu tempo e de
mitos como o amor romântico,
que ele procura desmistificar
com um cinismo ora fleumático ora ferino, uma misoginia
desembestada e um calculismo
que não exclui laivos contraditórios de compaixão.
É, enfim, o anti-herói e o anti-romântico por excelência, cuja
personalidade complexa e cindida só poderá ser vislumbrada
pela composição fragmentária
de diferentes pontos de vista,
do relato de quem o conheceu e
de trechos do seu próprio diário -o romance é formado
por cinco "contos", três deles
narrados pelo próprio "herói",
Pietchórin, um oficial russo no
Cáucaso.
O que diz o "herói" sobre si
mesmo? "Desde que me livrei
da tutela dos mais velhos, entreguei-me loucamente a todos
os prazeres que o dinheiro podia me possibilitar, (...) me lancei à alta sociedade e logo a sociedade também me provocou
ojeriza; apaixonava-me pelas
mulheres belas (...) e elas também me amavam, mas o seu
amor apenas excitava a minha
imaginação e o meu amor-próprio (...). Passei a ler, a estudar,
e as ciências também me saturaram; (...) as pessoas mais felizes são as ignorantes, e a fama é
uma questão de sorte, bastando ao indivíduo ser astuto para
alcançá-la. E então senti tédio."
Ou: "(...) Não tenho aptidão
para amizades. Entre dois amigos, um sempre é escravo do
outro, embora (...) nenhum
dos dois o reconheça; ser escravo é coisa que não consigo, e
mandar, neste caso, é um trabalho enfadonho porque além
de tudo ainda é preciso enganar; além do mais tenho um
criado e dinheiro!".
Ou ainda: "(...) A palavra casamento exerce sobre mim
uma espécie de poder mágico:
por mais apaixonadamente
que ame uma mulher, é só me
dar a impressão de que devo
me casar com ela -e adeus
amor! Meu coração se transforma em pedra, e não há nada
que lhe restitua o calor. (...) Há
pessoas que têm horror a baratas, aranhas, ratos...".
"O Herói do Nosso Tempo" é
o retrato desse herói enfadado
mas também desse tempo em
que as dissidências foram esmagadas e só resta o imobilismo geral ou a exibição cínica
do desinteresse, arriscando a
vida, por exemplo, numa roleta-russa.
Escaldado por um regime
que fazia uso corrente de perseguições e da censura, e após ter
sido exilado pelo czar no Cáucaso, em 1837, como punição
por ter escrito um poema em
que acusava a corte pela morte
de Púchkin, Liérmontov deve
ter achado de bom-tom acrescentar ao seu romance um prefácio de esclarecimento sobre a
ironia, quando o publicou três
anos depois, em 1840.
"O nosso público é ainda tão
jovem e ingênuo que não entende uma fábula sem a moral
da história no final. (...) Não
percebe ironias; é simplesmente mal-educado. (...) A cultura
moderna inventou uma arma
(...) quase invisível porém mortal, que, sob o disfarce da lisonja, desfecha golpes certeiros e
irrebatíveis. Nosso público parece aquele provinciano que,
após ouvir a conversa de dois
diplomatas pertencentes a cortes hostis, fica certo de que ambos estão enganando os seus
governos em benefício de uma
amizade mútua mais que terna."
Herdeiro assumido do "demonismo" de Byron na poesia,
Liérmontov vai desmontar, na
prosa, toda ingenuidade romântica (bucolismo, exotismo,
paixões impossíveis etc.),
abrindo caminho para um realismo implacavelmente irônico.
O Cáucaso do romance (e do
exílio do escritor), região que
na época era chamada pelo
czar de "Sibéria quente", com
suas estações de águas frequentadas por nobres moscovitas e
paisagens selvagens povoadas
por bandidos e civilizações
exóticas e indóceis (tchetchênos etc.) que ainda hoje se revoltam contra o domínio russo, é o próprio território dessa
ambiguidade.
A certa altura, o "herói" grita
desesperado: "Leve-me a algum lugar, bandido, nem que
seja ao inferno, contanto que
seja algum lugar!". O Cáucaso
de Liérmontov é um lugar nenhum, o desconhecido a ser
desbravado, o território do humor, do escracho e da ironia,
essa "arma invisível", possibilidade infinita de segundos sentidos, a antiimagem da Rússia
czarista e o passo pioneiro para
uma nova literatura.
Avaliação:
Livro: O Herói do Nosso Tempo
Autor: Mikhail Liérmontov
Tradução: Paulo Bezerra
Lançamento: Martins Fontes
Quanto: R$ 27,50 (224 págs.)
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