São Paulo, quarta-feira, 28 de setembro de 2005

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FESTIVAL DO RIO

Tsai Ming-liang fecha comunicação com o espectador

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DA ILUSTRADA

Não é de hoje que Tsai Ming-liang ganhou a reputação de cineasta difícil. "The Wayward Cloud" não só confirma como amplia esse renome. Com essa mistura de entropia de um universo demasiado pessoal e cenas à beira da pornografia, Tsai realizou aqui um filme dificílimo.
Primeiro, para o espectador desavisado, em busca de cenas explícitas de sexo que a imprensa prodigalizou na divulgação do filme desde sua estréia no Festival de Berlim deste ano. Rapidamente ele se entediará com o modo gelado e distante como Tsai filma o sexo. Levando ao extremo a percepção mecânica do sexo tal como filmado na pornografia, sua câmera não se preocupa em excitar. Ao contrário, o prazer passa longe e, em seu lugar, impera uma melancolia difusa e, mais que tudo, um desespero.
Segundo, para o cinéfilo atraído pela unanimidade crítica em torno do cinema oriental. Tsai só abre as portas para aqueles que de certa forma já freqüentam seu universo. Não se preocupa em oferecer um fiapo de narrativa e o pouco que fornece são referências tênues a situações e personagens de seus filmes anteriores.
Por exemplo, no primeiro encontro da garota com o ator pornô, ela pergunta: "Você não vende mais relógios?", numa referência ao personagem vivido por Lee Kang-sheng em "Que Horas São Aí?". Quase sem diálogos e com cenas de musicais que interrompem regularmente a narrativa sem, aparentemente, nada acrescentar, pode acabar sendo recusado como um enigma indecifrável.
Mas há um outro espectador possível e é este que Tsai quer. Ao fechar de tal maneira a comunicação, acaba por realizar um filme exclusivamente para iniciados.
Com isso, leva ao extremo a intenção autoral, reiterando a noção de obra a partir de uma experiência de conjunto e de continuidade, disponível apenas àqueles que viram seus filmes anteriores e, supõe-se, sejam capazes de compreender as metamorfoses elementares que Tsai manuseia com a paciência de um artesão.
A começar pelo uso esotérico de seu símbolo mais freqüente -a água. Em suas outras ficções, seu fluxo jorrava sem controle ("O Buraco"), escorria ou contaminava ("O Rio") e, mudada em fluxo humano (urina), era engarrafada ("Que Horas São Aí?"). Agora, sua situação é de rarefação. As torneiras estão secas e o fluxo desse elemento está retido dentro de garrafas, impossibilitado de fluir. Como tudo mais, aliás: a fala, o desejo, os afetos, a comunicação.
A única tentativa de ação que resta é o ato sexual. Mas, como tudo mais do universo de Tsai, esse é mudo, fechado em si, idiota, masturbatório. Agora, o único fluxo que escorre, que jorra, que se transfere é o sêmen.
Daí a razão da perigosa aproximação que o diretor faz dos códigos limitados da pornografia. Só que, num golpe de grande artista, Tsai desloca o signo sem profundidade da imagem pornográfica e concede a ele uma profundidade de significado que não se esgota numa primeira leitura.
É o que se vê na radicalidade da cena final, que não se acomoda à banal intenção de chocar. O que vem codificado como explícito na pornografia ganha aqui o status de não-mostrado. Ao espectador, não é mostrado, mas ele vê. E, à medida que o explícito se potencializa ao se tornar implícito, se abre ao espectador um abismo quase perigoso de significados.


The Wayward Cloud
    
Quando:
hoje, às 16h30, no Estação Botafogo 1 (veja endereços e preços em www.festivaldorio.com.br)



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