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FESTIVAL DO RIO
Tsai Ming-liang fecha comunicação com o espectador
CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DA ILUSTRADA
Não é de hoje que Tsai Ming-liang ganhou a reputação de
cineasta difícil. "The Wayward
Cloud" não só confirma como
amplia esse renome. Com essa
mistura de entropia de um universo demasiado pessoal e cenas à
beira da pornografia, Tsai realizou aqui um filme dificílimo.
Primeiro, para o espectador desavisado, em busca de cenas explícitas de sexo que a imprensa
prodigalizou na divulgação do filme desde sua estréia no Festival
de Berlim deste ano. Rapidamente ele se entediará com o modo gelado e distante como Tsai filma o
sexo. Levando ao extremo a percepção mecânica do sexo tal como filmado na pornografia, sua
câmera não se preocupa em excitar. Ao contrário, o prazer passa
longe e, em seu lugar, impera uma
melancolia difusa e, mais que tudo, um desespero.
Segundo, para o cinéfilo atraído
pela unanimidade crítica em torno do cinema oriental. Tsai só
abre as portas para aqueles que de
certa forma já freqüentam seu
universo. Não se preocupa em
oferecer um fiapo de narrativa e o
pouco que fornece são referências
tênues a situações e personagens
de seus filmes anteriores.
Por exemplo, no primeiro encontro da garota com o ator pornô, ela pergunta: "Você não vende
mais relógios?", numa referência
ao personagem vivido por Lee
Kang-sheng em "Que Horas São
Aí?". Quase sem diálogos e com
cenas de musicais que interrompem regularmente a narrativa
sem, aparentemente, nada acrescentar, pode acabar sendo recusado como um enigma indecifrável.
Mas há um outro espectador
possível e é este que Tsai quer. Ao
fechar de tal maneira a comunicação, acaba por realizar um filme
exclusivamente para iniciados.
Com isso, leva ao extremo a intenção autoral, reiterando a noção de obra a partir de uma experiência de conjunto e de continuidade, disponível apenas àqueles
que viram seus filmes anteriores
e, supõe-se, sejam capazes de
compreender as metamorfoses
elementares que Tsai manuseia
com a paciência de um artesão.
A começar pelo uso esotérico de
seu símbolo mais freqüente -a
água. Em suas outras ficções, seu
fluxo jorrava sem controle ("O
Buraco"), escorria ou contaminava ("O Rio") e, mudada em fluxo
humano (urina), era engarrafada
("Que Horas São Aí?"). Agora,
sua situação é de rarefação. As
torneiras estão secas e o fluxo desse elemento está retido dentro de
garrafas, impossibilitado de fluir.
Como tudo mais, aliás: a fala, o
desejo, os afetos, a comunicação.
A única tentativa de ação que
resta é o ato sexual. Mas, como tudo mais do universo de Tsai, esse
é mudo, fechado em si, idiota,
masturbatório. Agora, o único
fluxo que escorre, que jorra, que
se transfere é o sêmen.
Daí a razão da perigosa aproximação que o diretor faz dos códigos limitados da pornografia. Só
que, num golpe de grande artista,
Tsai desloca o signo sem profundidade da imagem pornográfica e
concede a ele uma profundidade
de significado que não se esgota
numa primeira leitura.
É o que se vê na radicalidade da
cena final, que não se acomoda à
banal intenção de chocar. O que
vem codificado como explícito na
pornografia ganha aqui o status
de não-mostrado. Ao espectador,
não é mostrado, mas ele vê. E, à
medida que o explícito se potencializa ao se tornar implícito, se
abre ao espectador um abismo
quase perigoso de significados.
The Wayward Cloud
Quando: hoje, às 16h30, no Estação
Botafogo 1 (veja endereços e preços em
www.festivaldorio.com.br)
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