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CINEMA/ESTRÉIA
Diretora Sandra Kogut investiga a própria identidade em documentário discreto e bem focado
"Um Passaporte Húngaro" reflete saga familiar
PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA
A inquietação que move
Sandra Kogut em "Um Passaporte Húngaro" é profundamente pessoal, o que não significa
que seu filme seja egocêntrico. Ao
contrário, são pouquíssimas (e
aparentemente acidentais) as vezes em que a câmera flagra a imagem da própria cineasta. Não aparecer parece ter sido uma das condições que a diretora se impôs,
apesar de ela estar sempre presente, conduzindo o filme com sua
voz em "off".
É uma opção bastante inteligente, em que a cineasta absorve as
melhores características do documentário moderno (assumir a
primeira pessoa, narrar o ponto
de vista do documentarista) sem
resvalar para aquilo que é o seu
perigo maior, que é o que ocorre
quando um filme acaba por transformar o realizador em algo muito mais importante do que a própria obra.
Sandra Kogut está à frente de
uma investigação em torno da sua
própria identidade, mas ela acaba
conseguindo manter o foco de seu
filme sobre o processo, e não sobre ela mesma.
Um trâmite burocrático é o fio
condutor: pode uma brasileira,
neta de húngaros, radicada na
França, tirar um passaporte húngaro? A resposta vai sendo dada
aos poucos, por meio de visitas
feitas aos consulados da Hungria
em Paris e no Rio de Janeiro e de
pesquisas realizadas no Arquivo
Nacional, onde a cineasta encontra a documentação em que está
registrada a entrada de seus avós
no Brasil.
Mas não é só. Sandra também
vai gravar (com uma pequena câmera digital) as conversas com
vários parentes, principalmente
sua avó, Mathila Lajta, que narra,
com minúcias, o processo de imigração dela e de seu marido durante os anos em que a perseguição aos judeus se espalhou pela
Europa.
Sandra Kogut não possui uma
formação de cineasta, mas é experiente na realização de vídeos.
Talvez por isso ela consiga utilizar
com tamanha destreza a câmera
digital. Vale dizer, aliás, que o fato
de o documentário ter sido realizado por meio dessa tecnologia é
um dos fatores de sucesso do filme. Sem a presença de microfones e de toda a ostentação técnica
dos equipamentos tradicionais de
filmagem, Kogut consegue obter
depoimentos mais ricos, intimistas, resultado que dificilmente seria alcançado caso não fosse utilizada a tecnologia digital.
Aos poucos, depoimentos e entrevistas vão formando uma complexa e interessante rede de informações. No Arquivo Nacional,
por exemplo, ficamos sabendo
como era a política de imigração
do Brasil na época e a nada louvável ambiguidade de Getúlio Vargas em relação ao anti-semitismo
europeu. Pela voz de Mathila Lajta, ficamos sabendo também que
a proibição do governo brasileiro
em receber os judeus não impediu que eles entrassem. O país
continuou recebendo-os, ainda
que sob a condição do suborno
dos funcionários dos portos brasileiros.
"Um Passaporte Húngaro" é
mais uma confirmação do ótimo
momento do documentário brasileiro. É uma investigação pessoal, mas que, ao mesmo tempo,
tem muito a dizer sobre este país
cheio de contradições.
Um Passaporte Húngaro
Produção: Brasil, 2003
Direção: Sandra Kogut
Quando: a partir de hoje, no cine Espaço Q
Unibanco 4
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