|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ANÁLISE
Foi um dos maiores prosadores do século 20
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Entre os muitos rumores sobre a vida reclusa de J.D. Salinger, sempre senti como particularmente doloroso o que dizia que ele não passava um dia
sem escrever ao menos uma
página: e ele sonegava esse
imenso tesouro à infinidade de
seus leitores em todo o mundo!
Que não fosse de se deixar comover por súplicas de leitores
estava bem claro, desde que
conseguira, em prol de seu silêncio, até alterar uma lei de
propriedade intelectual das
cartas e impedir que um de
seus biógrafos publicasse as
que enviara a amigos.
A sua morte alterará esse silêncio que guardava a todo custo? Terá deixado disposições a
respeito da publicação de sua
obra inédita? Há mesmo alguma? Seja qual for a resposta a
essas especulações bobas, atropeladas, que me vêm naturalmente ao saber de sua morte, é
certo que não é preciso que se
publique mais nada de Salinger
para tê-lo como um dos maiores prosadores do século 20.
Para falar de um só golpe de
uma obra tão decisiva, me ocorre pensar sobre a palavra
"phony", que reinventou em
seu "O Apanhador no Campo
de Centeio". O seu sentido mais
imediato é o de "falso", "fraudulento"; mas como "fake",
aponta também para a ideia de
"falsificado", de coisa que se
quer passar por outra, pelo que
não é -, como simulação e, portanto, como vulgaridade.
Da maneira como a dizia o jovem Holden Caulfield, aquele
"phony" era uma sentença inapelável a constatar o esvaziamento irreparável da vida adulta burguesa. Mas não se tratava
apenas de denuncismo ideológico: a palavra curta era tão intensa porque, ao tempo que
acusava, também desfechava
uma sentença inapelável contra quem a dizia. Pois nenhuma
inocência e vida digna do nome
se podia nomear ali, naquele
quadro sem respiro.
Trata-se de um niilismo radical. A loucura, como aconteceu
a Holden; o suicídio, como
ocorreu a Seymour; o colapso
nervoso de Franny; o progressivo alheamento e irritabilidade antissocial de Buddy: não há
saída, não há futuro. Não há
educação ou sociabilidade burguesas que não sejam tingidas
de morte ou de alheamento.
Pode-se dizer que Salinger, na
maior parte de suas narrativas,
acompanhava com mórbida
atenção, e estupendo estilo, a
consecução dessa tragédia.
Outro aspecto da palavra
"phony" é a peculiaridade estilística de Salinger, cujos contos
exibem enorme domínio do inglês, a que não poucos acusaram de afetada, talvez como
efeito das leituras de F.S. Fitzgerald. Porém, o espetáculo linguístico dos livros de Salinger
não está na elegância de seu vocabulário formal e culto, mas
na construção da gíria jovem,
do "slang", não apenas como
uma variante de registro, mas
como um novo vocabulário,
que tateia na dor e no desarticulado uma insuspeita qualidade de significar o que agoniza.
Leituras menos niilistas
veem em Salinger alguma saída
via budismo, ou outros orientalismos. Enquanto relia os seus
contos, nunca vi nenhuma.
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Texto Anterior: Aos 91 anos, morre escritor J.D. Salinger Próximo Texto: Repercussão Índice
|