São Paulo, sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

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ANÁLISE

Foi um dos maiores prosadores do século 20

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Entre os muitos rumores sobre a vida reclusa de J.D. Salinger, sempre senti como particularmente doloroso o que dizia que ele não passava um dia sem escrever ao menos uma página: e ele sonegava esse imenso tesouro à infinidade de seus leitores em todo o mundo!
Que não fosse de se deixar comover por súplicas de leitores estava bem claro, desde que conseguira, em prol de seu silêncio, até alterar uma lei de propriedade intelectual das cartas e impedir que um de seus biógrafos publicasse as que enviara a amigos.
A sua morte alterará esse silêncio que guardava a todo custo? Terá deixado disposições a respeito da publicação de sua obra inédita? Há mesmo alguma? Seja qual for a resposta a essas especulações bobas, atropeladas, que me vêm naturalmente ao saber de sua morte, é certo que não é preciso que se publique mais nada de Salinger para tê-lo como um dos maiores prosadores do século 20.
Para falar de um só golpe de uma obra tão decisiva, me ocorre pensar sobre a palavra "phony", que reinventou em seu "O Apanhador no Campo de Centeio". O seu sentido mais imediato é o de "falso", "fraudulento"; mas como "fake", aponta também para a ideia de "falsificado", de coisa que se quer passar por outra, pelo que não é -, como simulação e, portanto, como vulgaridade.
Da maneira como a dizia o jovem Holden Caulfield, aquele "phony" era uma sentença inapelável a constatar o esvaziamento irreparável da vida adulta burguesa. Mas não se tratava apenas de denuncismo ideológico: a palavra curta era tão intensa porque, ao tempo que acusava, também desfechava uma sentença inapelável contra quem a dizia. Pois nenhuma inocência e vida digna do nome se podia nomear ali, naquele quadro sem respiro.
Trata-se de um niilismo radical. A loucura, como aconteceu a Holden; o suicídio, como ocorreu a Seymour; o colapso nervoso de Franny; o progressivo alheamento e irritabilidade antissocial de Buddy: não há saída, não há futuro. Não há educação ou sociabilidade burguesas que não sejam tingidas de morte ou de alheamento.
Pode-se dizer que Salinger, na maior parte de suas narrativas, acompanhava com mórbida atenção, e estupendo estilo, a consecução dessa tragédia.
Outro aspecto da palavra "phony" é a peculiaridade estilística de Salinger, cujos contos exibem enorme domínio do inglês, a que não poucos acusaram de afetada, talvez como efeito das leituras de F.S. Fitzgerald. Porém, o espetáculo linguístico dos livros de Salinger não está na elegância de seu vocabulário formal e culto, mas na construção da gíria jovem, do "slang", não apenas como uma variante de registro, mas como um novo vocabulário, que tateia na dor e no desarticulado uma insuspeita qualidade de significar o que agoniza.
Leituras menos niilistas veem em Salinger alguma saída via budismo, ou outros orientalismos. Enquanto relia os seus contos, nunca vi nenhuma.

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).



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