São Paulo, quinta-feira, 29 de março de 2007

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MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

"Ó Paí, Ó"

Fui ao lançamento da comédia baiana. De certa forma, SP tem um déficit de Brasil. E a Bahia, um superávit

O PALCO para o "pocket show" de Caetano Veloso foi montado ao ar livre, no meio daquele conjunto moderninho de prédios no Itaim, onde fica o Kinoplex, na segunda-feira da semana passada. Estamos no lançamento, para convidados, de "Ó Paí, Ó", a comédia musical de Monique Gardenberg, que estréia amanhã.
As pessoas vão chegando e se espremendo em torno do palco e na entrada das salas. Fotógrafos perseguem celebridades. Recepcionistas pedem para ver a pulseirinha VIP. Acenos, apertos de mão, perfumes, pipoca. Vai ter festa depois. Já tem convite? A gente se vê.
Meu avô paulista costumava dizer que São Paulo era o maior país do mundo e o mais amigo do Brasil. A frase é cheia de significados. De certa forma, São Paulo tem um déficit de Brasil. E a Bahia, um superávit. São pólos de uma dialética da qual o tropicalismo é um dos frutos.
Se a bossa nova é um encontro da Bahia com o Rio, o tropicalismo é um choque com São Paulo. A analogia, creio, da artista Lygia Clark -"A Bahia é o Velho Testamento e o Rio, o Novo"-, diz muito sobre a trajetória do samba, que chegou aos cariocas no tabuleiro das baianas, prosperou gloriosamente, fez-se cultura nacional, rebolou em Hollywood e atingiu seu formato mais cosmopolita e sofisticado com o gênio de Tom Jobim e o violão e o canto de João Gilberto, que encerrou o assunto.
O tropicalismo foi, em parte, uma reação ao que veio a seguir, na esteira do golpe militar: o festival grandiloqüente da canção de protesto, o samba de "raízes" (ou jazzificado, mas "social" e cafona, como no repertório de Elis Regina) e o nacionalismo varonil de setores da crítica e das platéias estudantis de esquerda.
O tropicalismo pretendia retomar a "linha evolutiva" de João Gilberto, na célebre expressão de Caetano Veloso na "Revista de Civilização Brasileira". Mas, na verdade, não tinha uma fórmula pronta. Paródicos e alegóricos criaram um curto-circuito ao colocar em contato formas aparentemente inconciliáveis.
Isso não seria possível sem a energia paulista, que forneceu a eletricidade da jovem guarda, a alta voltagem dos Mutantes, o espírito inovador de Rogério Duprat e, não menos relevante, a entusiástica e civilizatória acolhida dos poetas e críticos concretistas. O livro "Balanço da Bossa e Outras Bossas", de Augusto de Campos, deveria cair no "provão" da jovem crítica e ser reavaliado por chato-boys que acusaram os concretos de "pegar carona" na onda tropicalista, quando eles já militavam pela retomada do que consideravam a linha evolutiva do modernismo, representada pela então diminuída obra de Oswald de Andrade.
"Ó Paí, Ó" pouco ou nada tem de tropicalista. Ecoa, na realidade, um pouco da dramaturgia do mundo CPC -o Centro Popular de Cultura, que reuniu artistas de esquerda nos anos 60. É uma divertida comédia afro-baiana pós-CPC com música popular pós-tropicalista. Mas isso já está começando a ficar complicado. Como diria o filósofo, deixemos o sentimento sair do armário: dei boas risadas, fiquei triste e saí com mais "mixed feelings" em relação às utopias civilizatórias brasileiras.


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