São Paulo, quinta-feira, 29 de maio de 2008

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Análise/arquitetura

Projeto de Siza estabelece conversa profunda com expressionismo do pintor

GUILHERME WISNIK
ESPECIAL PARA A FOLHA

O edifício da Fundação Iberê Camargo tem sido muito aguardado pelo meio arquitetônico. Vencedor do Leão de Ouro na Bienal de Arquitetura de Veneza em 2002, é tido, já há algum tempo, como um grande projetos do português Álvaro Siza.
Avesso a exibicionismos tecnológicos e preocupado em dialogar com os diversos contextos nos quais as suas obras se implantam (as peculiaridades do terreno, a tradição construtiva local, a história), Siza é considerado o expoente destacado de uma corrente a que se chamou de "regionalismo crítico".
Corrente de arquitetos empenhados em recuperar tradições culturais locais e idiossincráticas -normalmente artesanais-, ameaçadas de desaparecimento pelo impacto de uma globalização niveladora. Suas intervenções, portanto, são discretas e respeitosas.
O museu porto-alegrense, contudo, parece uma nota dissonante nesse contexto. Espremido entre uma falésia rochosa e uma avenida costeira, o edifício emerge no terreno como uma massa sólida e fraturada, bruta em sua volumetria e acabamento, e segmentada formalmente pelos tubos angulosos de rampas que se desprendem, em balanço, de sua fachada principal. Esses braços inclinados em arestas aludem, nas palavras do crítico inglês Kenneth Frampton, a "tendões fraturados de algum monstro calcificado", tal a sua vocação simbólica, de teor expressionista.
Se esse "protobrutalismo" arcaizante guarda referências evidentes com a "Cidadela" de concreto que Lina Bo Bardi construiu no Sesc Pompéia, em São Paulo, estabelece também uma conversa profunda com a obra do pintor gaúcho, povoada de "fantasmagorias", "solidões" e "carretéis" (novelos dobrados sobre si mesmos). Hermeticamente selado e vazado apenas por pequenas aberturas irregulares que enquadram detalhes da paisagem, o museu se desenvolve em altura segundo um percurso labiríntico, voltado para dentro. Irmanados poeticamente, Siza e Iberê são artistas cujo expressionismo provém, paradoxalmente, de uma subjetividade não exacerbada, e sim retraída.
Por fim, o projeto do museu também dialoga de modo muito próprio com a arquitetura de Oscar Niemeyer e a "promenade" aérea e movimentada criada por suas rampas leves e sinuosas. Contudo, a espacialidade entrecortada e descontínua criada pelo português, animada por atrações contingentes, é, em essência, oposta à continuidade transparente da arquitetura brasileira. Siza, no fundo, parece inverter o gesto "niemeyeriano", reconduzindo-o à cova lusitana.
Não de modo regressivo, mas com uma controlada ironia, e um amargo senso de realidade próprio a quem nunca deixou de pisar a "terra firme".


GUILHERME WISNIK é arquiteto e autor de "Lucio Costa" (Cosac Naify, 2001)


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