São Paulo, terça-feira, 29 de outubro de 2002

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BERNARDO CARVALHO

Os neoconservadores da literatura

Os fatos são eloquentes. William Gaddis (1922-98) foi um dos principais inovadores da prosa americana nos anos 50, abrindo o caminho para o que acabou conhecido, de forma um tanto simplista e generalizada, como literatura pós-moderna. É verdade que sua obra-prima, "Os Reconhecimentos" (1955), trata de falsificações, mas apenas para contrapor a um mundo de imposturas a sua crença mais profunda na verdade da arte.
A mesma oposição entre "arte da invenção" e "arte da imitação" ecoa agora em "Agape Ágape", seu "canto do cisne", como o define Joseph Tabbi no posfácio da edição póstuma que acaba de ser publicada nos Estados Unidos. O pequeno livro é um monólogo de frases entrecortadas e pensamentos interrompidos, o fluxo de consciência de um escritor que, à beira da morte, tem pressa de dizer tudo o que sabe sobre o mundo que está prestes a deixar.
Durante mais de 30 anos, Gaddis recolheu material para uma "história social da pianola", que ele pretendia escrever como um grande ensaio sobre a automatização da arte. A idéia era usar a pianola -o piano mecânico, que surgiu no início do século com a promessa de tornar o instrumento acessível a todos, já que dispensava o artista, o pianista- como metáfora de um mundo em que a arte é reduzida a mera função reprodutiva.
Com a proximidade da morte e a degradação física provocada pelo câncer, Gaddis decidiu transformar o projeto de ensaio num pequeno livro de ficção. "Ágape" vem do grego "Agape", confraternização em que se celebrava a criação nos primórdios do cristianismo e que acabou se degenerando e sendo banida pelos cristãos.
Seria ingênuo, no entanto, não perceber que a transformação do projeto de ensaio em ficção acarreta também uma mudança de fundo. Não é mais Gaddis quem fala, mas um personagem. Gaddis assiste ao colapso do próprio corpo e do mundo à sua volta. Mas isso não significa que a voz do seu monólogo seja literal.
À maneira de Thomas Bernhard, que ele leu nos anos 90 e cujas citações volta e meia emergem no texto, Gaddis ataca Deus e o mundo, mas parece estar morrendo de rir de tanta raiva. Como Bernhard, ele é fascinado pelo fracasso, mas sobretudo porque o fracasso é o que o mundo da reprodução mais odeia. E a arte que se recusa a reproduzir, ao fazer a celebração da criação, representa também uma ameaça à "arte imitativa".
No início dos anos 90, o escritor americano Jonathan Franzen descobriu "Os Reconhecimentos" e ficou encantado. Em 1996, inconformado depois de lançar dois romances que alcançaram sucesso de crítica, mas não de público, Franzen escreveu um manifesto em que prometia tornar a alta literatura (de Gaddis, entre outros) acessível à massa dos leitores atraídos pelo entretenimento. A coroação desse projeto veio no ano passado, com um romance saudado com retumbante sucesso de crítica e público: "As Correções".
Num artigo recente da revista "The New Yorker", Franzen voltou ao autor de "Os Reconhecimentos", só que não mais para reverenciá-lo. Com o respaldo que lhe conferiu o sucesso simultâneo de vendas e dos críticos, Franzen já pode reduzir Gaddis à mesma "chatice" que agora confessa tê-lo impedido de ler até o fim romances como "Moby Dick" e "Dom Quixote".
Para Franzen, que foi criado como protestante, a arte e a literatura precisam ter uma função e uma utilidade. A inadequação o incomoda. Para ele, os "romances difíceis" são apenas uma forma de os autores encobrirem as próprias deficiências. Não é um ponto de vista original. O assustador é que essa ótica convencional seja hoje defendida por quem pratica, segundo o mercado, "alta literatura".
Por essa entre outras razões, seria um equívoco ler William Gaddis como um escritor pós-moderno. O que "Agape Ágape" revela é a nostalgia do que era mais caro e fundamental ao projeto da literatura moderna, a nostalgia da juventude de uma arte e de uma literatura verdadeiras, capazes de tudo. Em seu "canto do cisne", Gaddis lembra apenas o que os seguidores da escola das convenções tentam ocultar: a liberdade do romance.
O romance é o que se faz dele, e as possibilidades são infinitas. Um bom romance não precisa ter necessariamente, como querem Franzen e outros neoconservadores, uma boa história com personagens psicologicamente bem construídos e verossímeis. Pode ser também um livro sem história, em que os personagens são pretextos para o desenho de uma visão de mundo. Cada caso é um caso.
O que o consenso neoconservador tenta promover nos Estados Unidos, com o respaldo do mercado e dos lucros, e que tem desdobramentos inevitáveis entre escritores pouco originais de países periféricos como o Brasil, é a celebração do produto em detrimento da criação. Por ser inadequado em relação ao que se aprendeu a esperar de um romance, por se arriscar numa procura pelo desconhecido, um livro é descartado como "chato" sem que se leve em conta o fato de essa busca poder ser muito mais significativa do que o produto agradável que somente reproduz as normas. Tudo poderia ser resumido a uma velha máxima citada por Gaddis: "Sobre o que é o seu livro, mister Joyce? Não é sobre alguma coisa, Madame, ele é a coisa".


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