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Robert Lepage descreve sonho divino
MONIQUE GARDENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA
Parece que um dia o canadense
Robert Lepage estava andando na
rua, quando avistou uma tampa
de máquina de lavar jogada no lixo. Ele apanhou aquele objeto
que, de alguma forma, já começava a inspirar seu novo trabalho.
Aquela tampa, com orifício redondo hermeticamente fechado,
passou a ser a base para a criação
de "O Lado Oculto da Lua", uma
peça de teatro de beleza estrondosa, que tive a alegria de apresentar
no Carlton Arts de 2001 e que chega agora ao cinema numa primorosa adaptação para a telona (sessões hoje, às 21h50, na Sala UOL, e
dias 30 e 1º).
Enquanto em "Os Sete Afluentes do Rio Ota" tudo partiu do retângulo (o formato do cenário camaleônico que se transformaria
em dezenas de espaços dos três
continentes retratados), em "O
Lado Oculto da Lua" tudo partiu
do círculo.
Do mesmo modo, aquela "janela" da máquina de lavar ora seria
o próprio eletrodoméstico, ora a
janela de uma cápsula espacial,
ora o orifício de uma máquina de
tomografia. O cotidiano, o vertiginoso e a grande questão humana.
Como melhor do que eu escreveu
meu irmão, o crítico de cinema
Carlos Alberto de Mattos: "O globo terrestre se dissolve na circunferência de uma máquina de lavar
ao final do prólogo de "A Face
Oculta da Lua". É uma dessas poderosas imagens-síntese que definem um filme".
Em "O Lado Oculto da Lua", Lepage parte da corrida espacial para criar uma metáfora comovente
a respeito da competição entre
dois irmãos e fazer uma reflexão
sobre o narcisismo/individualismo modernos.
No papel dos dois irmãos, o
também diretor Robert Lepage
interpreta, com sublime delicadeza, Philipe, cientista apaixonado
pelo espaço, e André, repórter da
previsão do tempo na TV canadense. Na peça, havia um texto
que foi suprimido do filme, mas
que ilustrava com perfeição a diferença entre os dois irmãos.
Philipe diz: "Não, Alexei Leonov
não era um astronauta, ele era um
cosmonauta. Não, não é a mesma
coisa mesmo. Porque um cosmonauta é geralmente russo e um astronauta é geralmente americano.
Mas as palavras não significam a
mesma coisa. A etimologia da palavra astronauta é: navegador em
busca de estrelas, e cosmonauta é:
navegador em busca do cosmos.
Não, não é a mesma coisa mesmo.
Bem, porque cosmos é uma palavra muito, muito precisa. É o contrário de caos. Aliás, os gregos antigos usavam essa palavra para
designar beleza, porque, para eles,
a estrutura harmoniosa do universo era sinônimo de beleza".
"Por isso você tem hoje palavras
como cosméticos, que vêm da
mesma raiz de cosmos. Não, isto
não faz deles "navegadores em
busca de cosméticos", faz deles
"navegadores em busca de beleza".
O que exatamente você não entende? O que estou tentando dizer
é que, por definição, um cosmonauta deveria ser alguém inspirado e um astronauta é sempre alguém bem financiado."
Eu não perderia este filme por
nada neste mundo. O mundo que
Philipe se propõe cinicamente a
explicar a supostos seres extraterrestres enquanto se prova incapaz
de conduzir a sua própria vidinha. O mundo que, para Philipe,
para Robert Lepage e para mim,
também será sempre uma enorme bola misteriosa na qual aparecemos como desimportantes figurantes de um brevíssimo sonho
divino.
Para terminar, queria transcrever mais um pequeno trecho, que
ficou de fora, mas que dá o tom de
Lepage e de Philipe ao defender,
em sua tese, a construção de um
elevador que conduza os habitantes da Terra à Lua:
"E que a gente construa o elevador no lado oculto da Lua, onde é
impossível ver a Terra. Desta forma, estaríamos sendo forçados a
parar de olhar para nós mesmos e
olhar profundamente para o vazio e experimentar a vertigem extrema. Uma vertigem que é comparável àquela que você vivencia
quando você perde seu pai e sua
mãe e descobre que, apesar deles
significarem o mundo para você,
estavam apenas bloqueando a visão e impedindo você de enxergar
o horizonte. Muito obrigada".
Monique Gardenberg é cineasta e dirigiu a montagem brasileira de "Os Sete
Afluentes do Rio Ota"
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