São Paulo, sexta-feira, 29 de outubro de 2004

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Robert Lepage descreve sonho divino

MONIQUE GARDENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA

Parece que um dia o canadense Robert Lepage estava andando na rua, quando avistou uma tampa de máquina de lavar jogada no lixo. Ele apanhou aquele objeto que, de alguma forma, já começava a inspirar seu novo trabalho.
Aquela tampa, com orifício redondo hermeticamente fechado, passou a ser a base para a criação de "O Lado Oculto da Lua", uma peça de teatro de beleza estrondosa, que tive a alegria de apresentar no Carlton Arts de 2001 e que chega agora ao cinema numa primorosa adaptação para a telona (sessões hoje, às 21h50, na Sala UOL, e dias 30 e 1º).
Enquanto em "Os Sete Afluentes do Rio Ota" tudo partiu do retângulo (o formato do cenário camaleônico que se transformaria em dezenas de espaços dos três continentes retratados), em "O Lado Oculto da Lua" tudo partiu do círculo.
Do mesmo modo, aquela "janela" da máquina de lavar ora seria o próprio eletrodoméstico, ora a janela de uma cápsula espacial, ora o orifício de uma máquina de tomografia. O cotidiano, o vertiginoso e a grande questão humana. Como melhor do que eu escreveu meu irmão, o crítico de cinema Carlos Alberto de Mattos: "O globo terrestre se dissolve na circunferência de uma máquina de lavar ao final do prólogo de "A Face Oculta da Lua". É uma dessas poderosas imagens-síntese que definem um filme".
Em "O Lado Oculto da Lua", Lepage parte da corrida espacial para criar uma metáfora comovente a respeito da competição entre dois irmãos e fazer uma reflexão sobre o narcisismo/individualismo modernos.
No papel dos dois irmãos, o também diretor Robert Lepage interpreta, com sublime delicadeza, Philipe, cientista apaixonado pelo espaço, e André, repórter da previsão do tempo na TV canadense. Na peça, havia um texto que foi suprimido do filme, mas que ilustrava com perfeição a diferença entre os dois irmãos.
Philipe diz: "Não, Alexei Leonov não era um astronauta, ele era um cosmonauta. Não, não é a mesma coisa mesmo. Porque um cosmonauta é geralmente russo e um astronauta é geralmente americano. Mas as palavras não significam a mesma coisa. A etimologia da palavra astronauta é: navegador em busca de estrelas, e cosmonauta é: navegador em busca do cosmos. Não, não é a mesma coisa mesmo. Bem, porque cosmos é uma palavra muito, muito precisa. É o contrário de caos. Aliás, os gregos antigos usavam essa palavra para designar beleza, porque, para eles, a estrutura harmoniosa do universo era sinônimo de beleza".
"Por isso você tem hoje palavras como cosméticos, que vêm da mesma raiz de cosmos. Não, isto não faz deles "navegadores em busca de cosméticos", faz deles "navegadores em busca de beleza". O que exatamente você não entende? O que estou tentando dizer é que, por definição, um cosmonauta deveria ser alguém inspirado e um astronauta é sempre alguém bem financiado."
Eu não perderia este filme por nada neste mundo. O mundo que Philipe se propõe cinicamente a explicar a supostos seres extraterrestres enquanto se prova incapaz de conduzir a sua própria vidinha. O mundo que, para Philipe, para Robert Lepage e para mim, também será sempre uma enorme bola misteriosa na qual aparecemos como desimportantes figurantes de um brevíssimo sonho divino.
Para terminar, queria transcrever mais um pequeno trecho, que ficou de fora, mas que dá o tom de Lepage e de Philipe ao defender, em sua tese, a construção de um elevador que conduza os habitantes da Terra à Lua:
"E que a gente construa o elevador no lado oculto da Lua, onde é impossível ver a Terra. Desta forma, estaríamos sendo forçados a parar de olhar para nós mesmos e olhar profundamente para o vazio e experimentar a vertigem extrema. Uma vertigem que é comparável àquela que você vivencia quando você perde seu pai e sua mãe e descobre que, apesar deles significarem o mundo para você, estavam apenas bloqueando a visão e impedindo você de enxergar o horizonte. Muito obrigada".


Monique Gardenberg é cineasta e dirigiu a montagem brasileira de "Os Sete Afluentes do Rio Ota"


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