São Paulo, segunda-feira, 29 de outubro de 2007

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NELSON ASCHER

A música das esferas ideológicas


Woodstock, Vietnã e "Hair" transformaram a música de consumo em padrão de pensamento


NÃO HÁ nada mais divisível do que a esquerda. Se um militante forma um partido, a adesão de um segundo equivale à criação de uma facção, e a de um terceiro já aponta para um "racha". Esse tipo de subdivisão infinita, porém, pertence antes ao âmbito das patologias políticas e merece apenas a atenção de especialistas e historiadores. Ainda assim, há outra espécie de divisão da esquerda, esta, sim, relevante para os leigos. É a que separa a linha-dura da linha-branda.
A primeira se compõe de uma minoria de militantes profissionais que, movida pelo rancor, se dedica em tempo integral à causa e gostaria de impor ao planeta regimes como o do Khmer Vermelho. Quanto à esquerda light, motivada sobretudo pelas boas intenções, ela é menos um movimento do que um estado de espírito, um clima de opinião e, como tal, vigora entre intelectuais, profissionais liberais, nas escolas, universidades e influencia o imaginário da classe média.
Embora o esquerdismo light não chegue ao extremo de formar movimentos como o Sendero Luminoso no Peru, nem tenha um roteiro para tomar o poder e transformar a sociedade de alto a baixo, é ele que de fato alimenta sentimentos difusos como o antiamericanismo, o ecologismo, o anticonsumismo, o pacifismo a qualquer custo, criando ao mesmo tempo uma platéia para produtos culturais variados que reforcem tais sentimentos.
Se a esquerda heavy metal existe convencionalmente desde os tempos da Revolução Francesa, o florescimento de sua contrapartida é recente, remontando aos anos 60. Observadores atribuem sua ascensão à exaustão gerada pelos megaconflitos do século passado e à fartura que passou a prevalecer no Primeiro Mundo. Seja lá qual tenha sido seu fertilizante, o fato é que, enquanto a esquerda linha-dura sofreu um revés com a queda do Muro de Berlim, sua prima linha-branda sobreviveu-a intacta e se fortificou de tal modo que talvez tenha sido graças a ela que a militância propriamente dita voltou a atuar como se jamais houvesse sido desmoralizada.
Quem não consiga compreender a diferença entre ambas pode recorrer a nossas variantes nacionais. Os petistas de carreira são a esquerda heavy e os tucanos, a versão light. Os petistas desprezam e até odeiam os tucanos que, por seu turno, consideram os petistas gente no fundo bem-intencionada, quem sabe um pouco influenciada pelo ardor compreensível e mesmo louvável da juventude ou da indignação. Não fosse, contudo, pela simpatia de tucanos e similares, com sua "compreensão" e nostalgia de uma ação mais idealista e vigorosa, o PT estaria bem mais isolado na sociedade brasileira.
Como é que os sentimentos difusos descritos acima se tornaram tão hegemônicos? Suspeito que o sentido através do qual eles chegaram ao subconsciente de tanta gente tenha sido a audição. Afinal, a época de sua ascensão coincide com a da expansão, planeta afora, de uma forma de expressão antes restrita: a música popular ou de massa, a canção industrial ou de consumo cuja universalização pressupunha avanços tecnológicos e um público crescente.
Antes de a arte se emancipar, aliás tardiamente, da religião, aquela era sem dúvida um dos grandes trunfos desta, capaz de veicular sedutoramente o essencial da doutrina. É difícil aquilatar o fascínio que a religião exerceu sobre gerações passadas se deixarmos de lado a arquitetura das catedrais, seus mosaicos, afrescos e vitrais, a pintura que divulgava para um público iletrado as histórias bíblicas e as vidas dos santos e, "last but not least", de Machaut e Palestrina a J.S. Bach, a música sacra.
Ora, a arte emancipada, dos tempos do iluminismo e depois, foi logo capturada pelas religiões seculares e, se as diversas ideologias do século passado, do comunismo ao nazismo, tentaram usá-la para seus fins, o sucesso dessa empreitada foi menor do que se esperava. Mas, enquanto o totalitarismo conduzia tais experimentos, a canção se afirmava, conquistando o mundo liberal e burguês.
Tratava-se no início, digamos, de Cole Porter até Elvis Presley, de algo politicamente neutro, ou melhor, apolítico. O surgimento da "new left", os protestos contra a Guerra do Vietnã, a interpenetração crescente entre política e atitudes cotidianas, além da síntese disso tudo em shows como Woodstock ou em obras como "Hair", converteram a música de consumo no fundo musical, a um tempo feedback e liga, da nova maneira padrão de sentir e pensar.
Como isso ocorreu e seu sentido, porém, serão assunto da próxima coluna.

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