São Paulo, sábado, 29 de novembro de 2008

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LIVROS

Brasileiros se estranham, diz Caldeira

Para organizador de relatos de "testemunhas da história", subjetividade e auto-identificação demoraram a se formar no país

Jorge Caldeira diz que ausência de imprensa e universidades, além de analfabetismo, limitou relatos históricos no país


DA REPORTAGEM LOCAL

Os brasileiros são os outros. Essa é a impressão que tem o leitor -e Jorge Caldeira, organizador da obra- após percorrer os 170 relatos reunidos em "Brasil - A História Contada por Quem Viu".
Das discussões de padres jesuítas sobre a alma e o pecado original entre os índios do território recém-descoberto à saga dos retirantes e a formação das grandes periferias e favelas, é preciso, na maior parte das vezes, recorrer a testemunhos e análises de observadores "externos" para se travar contato com movimentos cruciais da sociedade brasileira.
"Conversando com o antropólogo Darcy Ribeiro, certa vez, ele me fez notar algo interessante. Ele dizia que o primeiro relato escrito a partir do ponto de vista de um pobre na literatura brasileira, um escritor pensando como um sujeito que é pobre, e escrevendo na primeira pessoa como tal, é o Riobaldo, no "Grande Sertão: Veredas'", comenta Caldeira.
Assim é também nos relatos factuais. "Boa parte da nossa subjetividade é, durante longo período, ágrafa. Fui buscar onde nasceu essa subjetividade. Fala-se sempre sobre "eles". No caso dos índios, é um "eles" absoluto", diz o jornalista.
"O brasileiro que aparece aí nesse livro é quase sempre um objeto, ele é visto por outro. Ele não é o sujeito. É sempre "eles são assim". E tem muito pouco a versão própria do brasileiro. A gente se estranha um pouco. Essa subjetividade, necessária para que o testemunho seja bom, é recente e rara."

Excluídos do discurso
Embora, no século 20, aumentem a consciência de uma identidade nacional e o volume de relatos, que ganham forma comum e certa consistência por causa da influência do jornalismo, o ponto de vista "externo" persiste.
"Isso existe um pouco até hoje. Os brasileiros se estranham. Por exemplo, o que o favelado pensava há algumas décadas, que eu queria pôr no livro, está lá num relato antropológico da Ruth Cardoso. Não achei um auto-relato de um favelado nos anos 60, quando começou a se formar a atual periferia", afirma Caldeira.
Um dos exemplos mais interessantes desse olhar aparece em poemas de Gregório de Matos (1623-1696) reproduzidos no livro, nos quais se pode capturar algo da vida na Bahia do século 17.
O mesmo autor sempre ocupado em confessar os próprios pecados, não poupa de críticas seus contemporâneos, embora muitas vezes se apartando deles. "Gregório vivia a mesma vida daqueles que ele criticava -era boêmio, gastava dinheiro-, mas achava que eram "eles" que eram assim. Eram "eles", não "somos nós'", comenta o organizador.
A obra se torna, assim, um acompanhamento da lenta formação de identidades e subjetividades brasileiras, processo ainda hoje truncado. "A subjetividade é uma coisa recente no Brasil. A identidade também. Para se ter subjetividade, você precisa ter gente escrevendo. Precisa ter treino. Você encontra pouca auto-identificação na história."
Na falta de "treino" está, para Caldeira, uma das causas desse modo próprio de se relacionar com o país. "O alto grau de analfabetismo na história do Brasil leva a um baixíssimo grau de testemunho", ele afirma.
Mesmo na elite, a ausência de sistemas universitário e literário contribui para a restrita "auto-identificação". "Em Lima, você já tinha jornal impresso em 1620, por exemplo. Você tinha gráfica nas reduções de índios guaranis", cita Caldeira, para fazer o contraste com as colônias espanholas.
"A política portuguesa realmente influencia muito nisso. No Brasil, o jornal de massa, a alfabetização em massa são coisas do século 20."
É quando, segundo ele, finalmente o testemunho se torna "algo múltiplo", quando "você passa a ter a oportunidade de escolha".
Um desses raros casos acontece com o suicídio de Getúlio Vargas. Caldeira diz que todo mundo que estava no Palácio do Catete na noite de 23 de agosto de 1954 deixou algum tipo de relato sobre o que aconteceu. "Para esse momento é possível fazer um livro inteiro", diz o organizador, que acabou selecionando o depoimento de Alzira Vargas, filha do presidente.
(RAFAEL CARIELLO)

DESCOBRIMENTO (1500)
"Foram-se lá todos e andaram entre os nativos. E, segundo eles diziam, andaram bem uma légua e meia até uma povoação em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como essa nau capitânia. Eram de madeira e cobertas de palha, de razoável altura. Todas as casas eram de um só ambiente, sem nenhuma divisão, e tinham dentro muitos pilares. De pilar em pilar havia uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E cada casa tinha portas pequenas, uma num lado e outra no outro. Diziam que em cada casa se recolhiam 30 ou 40 pessoas, pois assim se organizavam."
PERO VAZ DE CAMINHA, em carta ao rei d. Manuel (1469-1521)

ANTROPOFAGIA (séc. 16)
"Assim que tudo está preparado, determinam o tempo em que deve morrer o prisioneiro e convidam os selvagens de outras aldeias para que venham assistir. Enchem então de bebidas todas as vasilhas. Um ou dois dias antes de as mulheres fabricarem as bebidas, conduzem o prisioneiro uma ou duas vezes ao pátio dentre as cabanas e dançam-lhe em volta. Logo que estão reunidos todos os que vieram de fora, dá-lhes as boas vindas o principal da choça e diz: "Vinde e ajudai a comer o vosso inimigo"."
HANS STADEN (c.1520-1576), que foi capturado por índios tupis, mas deixou de ser comido por ter sido considerado covarde

TIRADENTES ENFORCADO (1792)
"Pelas onze horas do dia, que o sol descoberto fazia ardente, entrou na praça vazia por um dos ângulos da figura, que faziam os regimentos postados, o réu e o demais acompanhamento dos ministros de justiça, dos irmãos da misericórdia, do clero e dos religiosos. Ligeiramente subiu os degraus e, sem levantar os olhos, que sempre conservou pregados no crucifixo sem estremecimento algum, deu lugar ao carrasco para preparar o que era necessário e, por três vezes, pediu-lhe que abreviasse a execução."
FREI RAIMUNDO DE PENAFORTE, um dos confessores de tiradentes

INDEPENDÊNCIA (1822)
"Montava d. Pedro uma possante besta gateada, sendo menos verdadeira a notícia, mais tarde dada pelos jornais, de que vinha em ardoroso cavalo de raça mineira. [...] Já havíamos subido a serra quando d. Pedro se queixou de ligeiras cólicas intestinais, precisando por isso apear-se, para empregar os meios naturais de aliviar seus sofrimentos. Observou-nos então que melhor seria a guarda seguir adiante e esperá-lo na entrada de São Paulo"
MANUEL MARCONDES DE OLIVEIRA MELO (1780-1863), futuro barão de Pindamonhangaba, que acompanhava d. Pedro na viagem pela província de São Paulo

ABOLIÇÃO (1888)
"Fazia sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total [...]. Houve missa campal no campo de São Cristóvão. Eu fui também com meu pai; mas pouco me recordo dela, a não ser lembrar-me que, ao assisti-la, me vinha aos olhos a Primeira Missa, de Vítor Meireles. Era como se o Brasil tivesse sido descoberto outra vez... Houve também préstitos cívicos. Anjos despedaçando grilhões, alegorias toscas passaram lentamente pelas ruas."
LIMA BARRETO (1881-1922), o escritor, que era mulato, e publicou, em 1911, sua memória do dia em que foi assinada a Lei Áurea

PELÉ
"O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. [...] Quando ele apanha a bola, e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento."
NELSON RODRIGUES (1912-1980), o escritor que decretou, três meses antes da Copa de 1958, que Pelé era "rei"



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