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LIVROS
Brasileiros se estranham, diz Caldeira
Para organizador de relatos de "testemunhas da história", subjetividade e auto-identificação demoraram a se formar no país
Jorge Caldeira diz que ausência de imprensa e universidades, além de analfabetismo, limitou relatos históricos no país
DA REPORTAGEM LOCAL
Os brasileiros são os outros.
Essa é a impressão que tem o
leitor -e Jorge Caldeira, organizador da obra- após percorrer os 170 relatos reunidos em
"Brasil - A História Contada
por Quem Viu".
Das discussões de padres jesuítas sobre a alma e o pecado
original entre os índios do território recém-descoberto à saga dos retirantes e a formação
das grandes periferias e favelas,
é preciso, na maior parte das
vezes, recorrer a testemunhos e
análises de observadores "externos" para se travar contato
com movimentos cruciais da
sociedade brasileira.
"Conversando com o antropólogo Darcy Ribeiro, certa vez,
ele me fez notar algo interessante. Ele dizia que o primeiro
relato escrito a partir do ponto
de vista de um pobre na literatura brasileira, um escritor
pensando como um sujeito que
é pobre, e escrevendo na primeira pessoa como tal, é o Riobaldo, no "Grande Sertão: Veredas'", comenta Caldeira.
Assim é também nos relatos
factuais. "Boa parte da nossa
subjetividade é, durante longo
período, ágrafa. Fui buscar onde nasceu essa subjetividade.
Fala-se sempre sobre "eles". No
caso dos índios, é um "eles" absoluto", diz o jornalista.
"O brasileiro que aparece aí
nesse livro é quase sempre um
objeto, ele é visto por outro. Ele
não é o sujeito. É sempre "eles
são assim". E tem muito pouco a
versão própria do brasileiro. A
gente se estranha um pouco.
Essa subjetividade, necessária
para que o testemunho seja
bom, é recente e rara."
Excluídos do discurso
Embora, no século 20, aumentem a consciência de uma
identidade nacional e o volume
de relatos, que ganham forma
comum e certa consistência
por causa da influência do jornalismo, o ponto de vista "externo" persiste.
"Isso existe um pouco até hoje. Os brasileiros se estranham.
Por exemplo, o que o favelado
pensava há algumas décadas,
que eu queria pôr no livro, está
lá num relato antropológico da
Ruth Cardoso. Não achei um
auto-relato de um favelado nos
anos 60, quando começou a se
formar a atual periferia", afirma Caldeira.
Um dos exemplos mais interessantes desse olhar aparece
em poemas de Gregório de Matos (1623-1696) reproduzidos
no livro, nos quais se pode capturar algo da vida na Bahia do
século 17.
O mesmo autor sempre ocupado em confessar os próprios
pecados, não poupa de críticas
seus contemporâneos, embora
muitas vezes se apartando deles. "Gregório vivia a mesma vida daqueles que ele criticava
-era boêmio, gastava dinheiro-, mas achava que eram
"eles" que eram assim. Eram
"eles", não "somos nós'", comenta o organizador.
A obra se torna, assim, um
acompanhamento da lenta formação de identidades e subjetividades brasileiras, processo
ainda hoje truncado. "A subjetividade é uma coisa recente no
Brasil. A identidade também.
Para se ter subjetividade, você
precisa ter gente escrevendo.
Precisa ter treino. Você encontra pouca auto-identificação na
história."
Na falta de "treino" está, para
Caldeira, uma das causas desse
modo próprio de se relacionar
com o país. "O alto grau de analfabetismo na história do Brasil
leva a um baixíssimo grau de
testemunho", ele afirma.
Mesmo na elite, a ausência de
sistemas universitário e literário contribui para a restrita
"auto-identificação". "Em Lima, você já tinha jornal impresso em 1620, por exemplo. Você
tinha gráfica nas reduções de
índios guaranis", cita Caldeira,
para fazer o contraste com as
colônias espanholas.
"A política portuguesa realmente influencia muito nisso.
No Brasil, o jornal de massa, a
alfabetização em massa são coisas do século 20."
É quando, segundo ele, finalmente o testemunho se torna
"algo múltiplo", quando "você
passa a ter a oportunidade de
escolha".
Um desses raros casos acontece com o suicídio de Getúlio
Vargas. Caldeira diz que todo
mundo que estava no Palácio
do Catete na noite de 23 de
agosto de 1954 deixou algum tipo de relato sobre o que aconteceu. "Para esse momento é possível fazer um livro inteiro", diz
o organizador, que acabou selecionando o depoimento de Alzira Vargas, filha do presidente.
(RAFAEL CARIELLO)
DESCOBRIMENTO (1500)
"Foram-se lá todos e
andaram entre os nativos. E,
segundo eles diziam,
andaram bem uma légua e
meia até uma povoação em
que haveria nove ou dez casas,
as quais eram tão compridas,
cada uma, como essa nau
capitânia. Eram de madeira e
cobertas de palha, de razoável
altura. Todas as casas eram de
um só ambiente, sem
nenhuma divisão, e tinham
dentro muitos pilares. De pilar
em pilar havia uma rede
atada pelos cabos, alta, em
que dormiam. Debaixo, para
se aquentarem, faziam seus
fogos. E cada casa tinha portas
pequenas, uma num lado e
outra no outro. Diziam que
em cada casa se recolhiam 30
ou 40 pessoas, pois assim se
organizavam."
PERO VAZ DE CAMINHA,
em carta ao rei d. Manuel (1469-1521)
ANTROPOFAGIA (séc. 16)
"Assim que tudo está preparado,
determinam o tempo em que deve morrer o
prisioneiro e convidam os selvagens de
outras aldeias para que venham assistir.
Enchem então de bebidas todas as vasilhas.
Um ou dois dias antes de as mulheres
fabricarem as bebidas, conduzem o
prisioneiro uma ou duas vezes ao pátio
dentre as cabanas e dançam-lhe em volta.
Logo que estão reunidos todos os que
vieram de fora, dá-lhes as boas vindas o
principal da choça e diz: "Vinde e ajudai a
comer o vosso inimigo"."
HANS STADEN (c.1520-1576),
que foi capturado por índios tupis, mas deixou de ser
comido por ter sido considerado covarde
TIRADENTES ENFORCADO (1792)
"Pelas onze horas do dia, que o sol
descoberto fazia ardente, entrou na praça
vazia por um dos ângulos da figura, que
faziam os regimentos postados, o réu e o
demais acompanhamento dos ministros
de justiça, dos irmãos da misericórdia, do
clero e dos religiosos. Ligeiramente subiu os
degraus e, sem levantar os olhos, que
sempre conservou pregados no crucifixo
sem estremecimento algum, deu lugar ao
carrasco para preparar o que era necessário
e, por três vezes, pediu-lhe que abreviasse a
execução."
FREI RAIMUNDO DE PENAFORTE,
um dos confessores de tiradentes
INDEPENDÊNCIA (1822)
"Montava d. Pedro uma
possante besta gateada,
sendo menos verdadeira a
notícia, mais tarde dada pelos
jornais, de que vinha em
ardoroso cavalo de raça
mineira. [...] Já havíamos
subido a serra quando d. Pedro
se queixou de ligeiras cólicas
intestinais, precisando por
isso apear-se, para empregar
os meios naturais de aliviar
seus sofrimentos. Observou-nos então que melhor seria a
guarda seguir adiante e
esperá-lo na entrada de São
Paulo"
MANUEL MARCONDES DE OLIVEIRA
MELO (1780-1863),
futuro barão de Pindamonhangaba, que
acompanhava d. Pedro na viagem pela
província de São Paulo
ABOLIÇÃO (1888)
"Fazia sol e o dia estava
claro. Jamais, na minha vida,
vi tanta alegria. Era geral, era
total [...]. Houve missa campal
no campo de São Cristóvão. Eu
fui também com meu pai;
mas pouco me recordo dela, a
não ser lembrar-me que, ao
assisti-la, me vinha aos olhos a
Primeira Missa, de Vítor
Meireles. Era como se o Brasil
tivesse sido descoberto outra
vez... Houve também préstitos
cívicos. Anjos despedaçando
grilhões, alegorias toscas
passaram lentamente pelas
ruas."
LIMA BARRETO (1881-1922),
o escritor, que era mulato, e publicou,
em 1911, sua memória do dia em que foi
assinada a Lei Áurea
PELÉ
"O que nós chamamos de
realeza é, acima de tudo, um
estado de alma. [...] Quando
ele apanha a bola, e dribla um
adversário, é como quem
enxota, quem escorraça um
plebeu ignaro e piolhento."
NELSON RODRIGUES (1912-1980),
o escritor que decretou, três meses
antes da Copa de 1958, que Pelé era "rei"
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