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São Paulo, segunda-feira, 29 de dezembro de 2003

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LITERATURA

Escritor francês afirma que o fim na sociedade atual apenas existe na negação e na representação do cinema

"Quem não pensa na morte se priva da alegria da vida"

FREE-LANCE PARA A FOLHA, EM PARIS

Leia abaixo a continuação da entrevista com o psicanalista Michel Schneider, autor de "Morts Imaginaires", sobre os últimos instantes de escritores famosos. (FERNANDO EICHENBERG)

Folha - Como é morrer como um artista da frase?
Schneider -
Muitas vezes uma defesa contra o fim das palavras é criar a palavra final. A expressão "ter a última palavra" significa mostrar que somos mais fortes, mais malandros, mais inteligentes. Mas é a morte que tem a última palavra -e sua última palavra é muda, é o silêncio. Freud mostrou que a palavra espirituosa é uma provocação lançada à morte, porque por trás da última palavra há sempre o medo da morte. A linguagem é o que nos separa, imperfeita e provisoriamente, da morte. De certa forma, o autor escreve sua morte e sua vida.

Folha - O senhor cita cinco categorias de escritores mortos. Como são aqueles que morrem de história, como Walter Benjamin?
Schneider -
Há efetivamente o peso da história. Não se morre do mesmo modo na época de Montaigne, de Jean Lorrain ou de Maupassant. Para Montaigne, as últimas palavras são ao nosso Pai. Promete-se sua alma à Deus e recita-se a oração dos cristãos. É só no fim do século 17 ou 18 que se começa a morrer "eu", essa idéia moderna e individualista que encontramos em Benjamin Constant, Stendhal ou Rilke. Cada escritor pertence à sua história e também à história em si mesma. Para alguns, como Stefan Zweig ou Walter Benjamin, há o peso da história, de totalitarismos que fizeram com que se suicidassem.

Folha - Para o sr., Pascal e Tolstói, por exemplo, morreram de Deus?
Schneider -
O caso de Pascal é surpreendente. A frase mais terrível do livro está em seu pensamento: "Morreremos sós". Não se espera isso de um pensador cristão. Pascal morre do único amor que concebeu, o amor de Deus. Um amor trágico e doloroso.

Folha - Entre todos, o sr. diz preferir aqueles que "morrem de sua morte", como Montaigne ou Freud.
Schneider -
São aqueles que não têm uma morte forçosamente estóica, mas algo de um olhar que não retorna, que reconhecem a força da morte. Meus preferidos morreram na busca do sentido. E, quando não havia mais sentido a buscar, o jogo acabou, a comédia terminou. Considero justa a crença que diz que viver é dar sentido ao que não possui sentido.

Folha - Para o sr., a palavra "morte" invoca música e consolação?
Schneider -
Gosto da idéia de que, em francês, a palavra "morte" [mort] é a palavra "palavra" [mot] com uma letra a mais. É uma palavra que não me faz mal, embora não goste do que está por trás dela. O livro começa e termina pela palavra "terminar", foi algo deliberado. É a idéia de que se completou um tema, com variações bastante contrastadas, rápidas, curtas, longas, lentas, tristes, engraçadas. Mas ainda prefiro a palavra "morrer", porque escrevemos para que algo não termine.

Folha - E a consolação?
Schneider -
Não se trata de remastigar a morte com amargura, mas de não fugir dela, não renegá-la ao fundo do não-representável, num hospital com sondas e tecnologias avançadas. Pertenço a uma geração em que havia uma apropriação da morte pela sociedade. Hoje, a morte existe na representação do cinema, mas na negação, é sempre a morte violenta. Como a pornografia, de uma certa forma, é a negação da sexualidade, a morte violenta é uma negação da morte banal, cotidiana. Aqueles que tentam não pensar na morte acabam se privando da alegria de viver.

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