São Paulo, terça-feira, 30 de janeiro de 2007

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BERNARDO CARVALHO

Pensadores russos

Foi para dar conta da experiência da geração de 1840 que se cunhou o termo "intelligentsia"

NUMA DAS cenas finais de "Salvage" ("Salvamento"), terceira parte da trilogia "The Coast of Utopia" ("A Costa da Utopia"), do dramaturgo inglês Tom Stoppard, que estréia hoje em Nova York, o romancista Ivan Turguêniev encontra um médico num balneário da ilha de Wight freqüentado por exilados russos. O médico diz que só lê livros úteis, como "O Fim das Hemorróidas", do doutor Mackenzie. Turguêniev rebate: "Ler o doutor Mackenzie me faz lembrar das minhas [hemorróidas], ao passo que ler Pushkin me faz esquecer delas".
"A Costa da Utopia" gira em torno de um punhado de idealistas e revolucionários russos, a chamada geração de 1840, que incluía, além de Turguêniev, o anarquista Mikhail Bakúnin (1814-76; interpretado por Ethan Hawke na montagem americana), o crítico literário Vissarión Bielínski (1811-48; interpretado por Billy Crudup) e Alexander Herzen (1812-70), considerado por Isaiah Berlin no seu excelente "Pensadores Russos" (Companhia das Letras, 1988) "o mais interessante escritor político russo do século 19".
A trilogia de Stoppard trata do desencanto. A peça estreou em Londres, em 2002. Nos Estados Unidos, a primeira parte, "Voyage" (viagem), estreou em outubro passado e a segunda, "Shipwreck" (naufrágio) em dezembro -as duas seguem em cartaz, junto da terceira, até 13 de maio, no Lincoln Center.
Foi para dar conta da experiência dessa geração, um grupo de jovens brilhantes, na maioria filhos da elite russa influenciados pelo romantismo e pelo idealismo alemão e inconformados com a injustiça social, com o sistema de servidão feudal, com a autocracia czarista e com o atraso econômico, político e intelectual do país, que se cunhou o termo "intelligentsia".
"Voyage", primeira parte da trilogia de Stoppard, começa na propriedade da família Bakúnin, a cerca de 250 km de Moscou, em 1833. É lá, num cenário idílico apenas em aparência, enquanto a grande maioria da população vive na miséria mais absoluta, que o jovem Bakúnin, leitor de Kant, Schelling, Fichte e Hegel e futuro agitador anarquista, suas irmãs e seus convidados dis- correrão sobre o que a censura czarista não lhes permite publicar. É lá que o jovem e pobre Bielínski dirá pela primeira vez o que os outros terão de esperar o exílio para compreender: "Quando filósofos [...] começam a estabelecer regras para a beleza, o sangue nas ruas passa a ser inevitável".
"A Costa da Utopia" é a história de um grupo de jovens socialistas russos que, forçados ao exílio e encurralados entre a barbárie da autocracia czarista e o fracasso das revoluções de 1848 na Europa Ocidental, acabam se tornando personagens involuntários de uma tragédia da modernidade. Desiludidos com o Ocidente e com os idealismos em que se formaram, vendo suas vidas amorosas e familiares desmoronar, só lhes resta encontrar uma via própria de ação e reflexão, que eles tentam exercitar como podem em pequenos jornais revolucionários. Sua experiência fracassada servirá de inspiração para uma nova geração de revolucionários russos (a de 1860), bem menos sofisticados em termos humanistas e intelectuais, para dizer o mínimo, mas decididos a não perder oportunidades para pôr em prática a sua idéia de revolução, sem que isso lhes exija maiores reflexões sobre os meios a serem utilizados.
A tragédia de Alexander Herzen, protagonista da segunda e da terceira parte da trilogia, vem de sua luta obstinada pela liberdade, a despeito de todas as desilusões. E de sua inadequação às correntes do pensamento político do seu tempo que terminaram por se impor. Na contramão da tradição teleológica que vai culminar em Marx, passando por Hegel, Herzen se rebela contra a idéia de que a natureza e a histó- ria possam seguir um programa (mesmo que inconsciente) de progresso. Ele não idealiza as massas -e combate com veemência a hipocrisia dos que pretendem formar uma nova elite para comandá-las, "em nome delas".
"Se a história seguisse um programa estabelecido, perderia todo interesse, se tornaria desnecessária [...] os grandes homens seriam simplesmente heróis se pavoneando num palco", Isaiah Berlin cita Herzen. Os personagens da trilogia de Stoppard não são pavões num palco. Ao contrário, encarnam a humanidade trágica dos que estão decididos a lutar pela liberdade dos indivíduos até as últimas conseqüências, mesmo que essa seja uma causa perdida. E sabendo que tal integridade de pensamento e ação terminará por condená-los ao esquecimento, do lado dos perdedores.


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