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BERNARDO CARVALHO
Pensadores russos
Foi para dar conta da experiência da geração de 1840 que se cunhou o termo "intelligentsia"
NUMA DAS cenas finais de "Salvage" ("Salvamento"), terceira parte da trilogia "The
Coast of Utopia" ("A Costa da Utopia"), do dramaturgo inglês Tom
Stoppard, que estréia hoje em Nova
York, o romancista Ivan Turguêniev
encontra um médico num balneário
da ilha de Wight freqüentado por
exilados russos. O médico diz que só
lê livros úteis, como "O Fim das Hemorróidas", do doutor Mackenzie.
Turguêniev rebate: "Ler o doutor
Mackenzie me faz lembrar das minhas [hemorróidas], ao passo que
ler Pushkin me faz esquecer delas".
"A Costa da Utopia" gira em torno
de um punhado de idealistas e revolucionários russos, a chamada geração de 1840, que incluía, além de
Turguêniev, o anarquista Mikhail
Bakúnin (1814-76; interpretado por
Ethan Hawke na montagem americana), o crítico literário Vissarión
Bielínski (1811-48; interpretado por
Billy Crudup) e Alexander Herzen
(1812-70), considerado por Isaiah
Berlin no seu excelente "Pensadores
Russos" (Companhia das Letras,
1988) "o mais interessante escritor
político russo do século 19".
A trilogia de Stoppard trata do desencanto. A peça estreou em Londres, em 2002. Nos Estados Unidos,
a primeira parte, "Voyage" (viagem),
estreou em outubro passado e a segunda, "Shipwreck" (naufrágio) em
dezembro -as duas seguem em cartaz, junto da terceira, até 13 de maio,
no Lincoln Center.
Foi para dar conta da experiência
dessa geração, um grupo de jovens
brilhantes, na maioria filhos da elite
russa influenciados pelo romantismo e pelo idealismo alemão e inconformados com a injustiça social,
com o sistema de servidão feudal,
com a autocracia czarista e com o
atraso econômico, político e intelectual do país, que se cunhou o termo
"intelligentsia".
"Voyage", primeira parte da trilogia de Stoppard, começa na propriedade da família Bakúnin, a cerca de
250 km de Moscou, em 1833. É lá,
num cenário idílico apenas em aparência, enquanto a grande maioria
da população vive na miséria mais
absoluta, que o jovem Bakúnin, leitor de Kant, Schelling, Fichte e Hegel e futuro agitador anarquista,
suas irmãs e seus convidados dis-
correrão sobre o que a censura czarista não lhes permite publicar. É lá
que o jovem e pobre Bielínski dirá
pela primeira vez o que os outros
terão de esperar o exílio para compreender: "Quando filósofos [...] começam a estabelecer regras para
a beleza, o sangue nas ruas passa a
ser inevitável".
"A Costa da Utopia" é a história de
um grupo de jovens socialistas russos que, forçados ao exílio e encurralados entre a barbárie da autocracia
czarista e o fracasso das revoluções
de 1848 na Europa Ocidental, acabam se tornando personagens involuntários de uma tragédia da modernidade. Desiludidos com o Ocidente
e com os idealismos em que se formaram, vendo suas vidas amorosas
e familiares desmoronar, só lhes resta encontrar uma via própria de ação
e reflexão, que eles tentam exercitar
como podem em pequenos jornais
revolucionários. Sua experiência
fracassada servirá de inspiração para uma nova geração de revolucionários russos (a de 1860), bem menos sofisticados em termos humanistas e intelectuais, para dizer o mínimo, mas decididos a não perder
oportunidades para pôr em prática a
sua idéia de revolução, sem que isso
lhes exija maiores reflexões sobre os
meios a serem utilizados.
A tragédia de Alexander Herzen,
protagonista da segunda e da terceira parte da trilogia, vem de sua luta
obstinada pela liberdade, a despeito
de todas as desilusões. E de sua inadequação às correntes do pensamento político do seu tempo que
terminaram por se impor. Na contramão da tradição teleológica que
vai culminar em Marx, passando
por Hegel, Herzen se rebela contra
a idéia de que a natureza e a histó-
ria possam seguir um programa
(mesmo que inconsciente) de progresso. Ele não idealiza as massas
-e combate com veemência a hipocrisia dos que pretendem formar
uma nova elite para comandá-las,
"em nome delas".
"Se a história seguisse um programa estabelecido, perderia todo interesse, se tornaria desnecessária [...]
os grandes homens seriam simplesmente heróis se pavoneando num
palco", Isaiah Berlin cita Herzen. Os
personagens da trilogia de Stoppard
não são pavões num palco. Ao contrário, encarnam a humanidade trágica dos que estão decididos a lutar
pela liberdade dos indivíduos até as
últimas conseqüências, mesmo que
essa seja uma causa perdida. E sabendo que tal integridade de pensamento e ação terminará por condená-los ao esquecimento, do lado
dos perdedores.
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